segunda-feira, 21 de maio de 2012

Alexandre Valinho Gigas (quero destruir catadrais)

QUERO DESTRUIR CATEDRAIS
Quero destruir catedrais / Nas mentes dos mortais / Quero derrubar verdades supremas / De alicerces fundos / Dos meus confusos mundos / Quero aniquilar o amor eterno / Monogâmico / Erguer o amor momentâneo / Somático / Rebentar o monumento familiar / Estático / E plantar a amizade / Dinâmico
Quero destruir catedrais / Nas mentes dos mortais / Quero derrubar verdades supremas / De alicerces fundos / Dos meus confusos mundos / Quero cortar as fronteiras / E abraçar as gentes / Comer as palavras vãs / Reinventá-las quentes e profundas / Explodir governantes inaptos / Varrer-lhes os restos / Matérias imundas.

Quero destruir catedrais / Nas mentes dos mortais / Quero derrubar verdades supremas / De alicerces fundos / Dos meus confusos mundos / Quero destruir catedrais / Esquartejar seus mestres / Estilhaçar a fé / Nas mentes dos mortais;
Ensiná-los deuses / Todos iguais / Colocá-los de pé / Descrentes.

Quero destruir catedrais / Nas mentes dos mortais / Quero derrubar verdades supremas / De alicerces fundos / Dos meus confusos mundos.
 
Alentejo 2010
Cava, rapaz. Cava. Dá-lhe com a força que tens e a outra que procuras, para tentar chegar ao tesouro. Cava essa terra endurecida e estéril, que nada te dará para além de um punhado de memórias fragmentadas, compartimentadas cientificamente. De quando em vez faz uma pausa para repôr os níveis de água no corpo; não por muito tempo, mas o suficiente para olhares a enorme debulhadora que passa a ceifar o trigo, conduzida para o Sr. Francisco que te sorri e te acena. Pensa nas almas que cavavam e ceifavam estas terras, ainda tu eras criança, no seu esforço, nas suas vidas breves e cheias de nada. Reconforta-te nessas imagens da ironia histórica e não penses mais, não disseques as ideias que te podem fazer chegar a comparações anacrónicas, talvez....
Cava, besta. Cava. Dá tudo o que os teus músculos doridos podem dar, as tuas mãos calejadas, a tua alma sofrida. Dá tudo, para que pagues a tempo os impostos, os teus e da tua família que os não consegue pagar. Paga sem bufar, sem pensar sobretudo em todos os cabrões que passaram anos a esbanjar o que lhes davas sorridente, com o suor a escorrer pelo corpo e esse corpo a anunciar as primeiras mazelas dos dias que corriam depressa demais. Não penses, porque agora alguém quer por freio nisso. Acredita, menino. Acredita. Crê como a fé que tinhas e que perdeste no caminho, pelo meio das distracções da ciência; crê que agora os mesmos cabrões vão ser sérios e gastar bem o teu dinheiro, poupar como tu o poupas todos os dias. Se não quiseres crer, ainda te podes manifestar contra o mais e mais que te roubam, contra esses que tomam decisões por ti, o parvalhão que vota com a ideia que tem algo a dizer, que os outros te vão ouvir. Viva a liberdade à medida que ta vendem como sendo a tua, na medida em que tu escolhes. Viva a liberdade e não penses também que esses parvalhões que se indignam nas ruas da capital só estão contra que lhes vão aos seus bolsos. Quais questões de princípio; quais revoluções sangrentas contra esses que roubam o mesmo que seus pais roubavam, da mesma forma que lhes ensinaram durante séculos e séculos.
Cava, português. Cava. Sente esse orgulho desmesurado na tua cultura; na tua língua que se globaliza por ordem de um Presidente da República tabula rasa; nos donos das artes que maltratam os artistas que lhes não enchem os bolsos e que os sacralizam na morte para que rendam tudo o que neles investiram. Vai ao futebol e bebe cerveja nacional e grita vivas quando ganham e chama-lhes nomes quando perdem e considera que estás num país pequeno, que todos nós somos muitos pequeninos e que daí, de forma dogmática, tens de aceitar esse suor que te ensopa as roupas.
Cava, filho da puta. Cava. Sonha com o final do dia e com a possibilidade de ires beber umas cervejas ao tasco da aldeia. Tu feliz, sim, porque nada tens a ver com todos os outros que se encharcam de cerveja ao teu lado, com o mesmo olhar cansado, com a mesma revolta contida de quem compreende muito bem tudo o que lhes catequizam os jornais. Tu um ser iluminado que chega a casa e ainda tem algum tempo para um livro que te direccione os sonhos inquietos da noite. Sonhas as aventuras que lês, enquanto os outros ainda se afogam em cerveja sem pensar em mais nada. Sonhas que cortas as gargantas dos capitães oficiais dos barcos e que, numa qualquer revolução, te cortam a cabeça a ti, por seres diferente. Não sonhas com o resto que pensas quando acordas de madrugada alagado em suor. Vai cavar, parvalhão. Vai cavar, que outro dia nasceu e outros que dormem, estão à espera do teu esforço em prol do bem comum.

André Faustino (domingo 86)


DOMINGO 86
Vamos fazer deste Domingo um Domingo de 1986. Naquele altura em que chovia o mês de Outubro todo (e não só na última semana) e, depois de fazer os TPC, ia ver um bocadinho de televisão, ou então lançava-me sobre um jogo do Spectrum 48K e esperava 5 ou 6 minutos até o jogo entrar (isto se tivesse a sorte de ele carregar à primeira). E tínhamos Tempo! Enquanto jogava metia a tocar um disco (vinil) que me tinham oferecido ou nos anos ou no Natal. Mas era uma chatice pois tinha que estar sempre a levantar-me para mudar o lado do vinil e a carregar no 'P' para pausar o jogo. De vez em quando ia tocar qualquer coisa no meu Casio VL-qquer coisa. Ou então, se me fartasse do computador, ia brincar com cidades feitas de Legos para criar aventuras com os meus soldadinhos da Mattel ou ler um livro - ou o Astérix, ou o Tintin ou da Disney. Ou então a minha colecção do Era uma Vez o Homem. Entretanto já tinha lanchado e já era hora de jantar - 8 horas. Também não havia mais nada para fazer à noite - chovia, vento (pronto... o cheirinho a castanhas lá fora era baril) e a televisão acabava sempre à meia noite ou pouco mais. Achava eu... Era raro deitar-me depois das 10h para testemunhar isso. Ficava era na cama a ler às escondidas.... E havia Tempo...
Durante a manhã, depois de acordar e tomar uma banhoca quente, pois já estava mesmo frio lá fora, ia tomar o pequeno almoço por volta das 9h(?) altura em que começava a emissão da RTP - 70X7,seguida da TV Rural e depois o Vasco Granja com desenhos animados estranhissimos. Depois havia uns quantos porreirissimos - o Tom&Jerry ou a Pantera Cor de Rosa ou algo da WarnerBros, e depois era a seca da Missa... Almoçava e, aí sim, ia fazer os TPC's que faltavam - normalmente eram os desenhos do Padre Miguel - Prof Old mesmo Old Skool de Educação Visual... E depois é que vinha o resto da brincadeira… (domingo de Outubro de 2011)

André Fernandes (666 octanas)


O fio-terra e o silêncio das sirenes.
E se (só) estivermos partidos por dentro e isso não se vir por fora? Se isso não passar nem para os outros, e nem sequer para nós próprios, será que é uma mera sugestão pontiaguda ou será tão forte que desfez em cacos todas as ligações com o mundo real e se instalou para sempre no nosso fundo? Sem esperança de lá sair ou de lá chegarmos... E se durar tanto tempo que nos esquecemos e vivemos o tempo todo sem nela pensarmos mas com ela a pincelar as nossas tardes e a desenhar os nossos sonhos, como uma força esquecida que não pode ser culpada pelo que cria. Desconexo por não vestir uma farda que nada me diz mas que em mim foi cosida. Um barco à deriva por ter ignorado e esquecido o vento que nos tirou da rota e me conduziu para um mar calmo; sem ondas, sem espuma, sem tempestades, sem medusas... sem merda nenhuma.  Depois canalizas tudo para o que crias e partilhas com o mundo, e todos batem palmas e riem, sem se aperceberem que estás mesmo assim por dentro. Se estamos tão partidos por dentro que conseguimos luzidir tamanhos raios disformes cá para fora como é que os outros não o conseguem ver? Pensam que os raios não são parte do nosso interior, não reparam que isto vem de dentro de nós? ...Se serve de catarse? Se assim conseguimos mergulhar abstractamente naquilo que não podemos quantificar ou perceber? Se a distorção é o fio-terra que me conduz e doma os demónios? Sei lá... mas só assim conseguimos escavar tão fundo e mergulhar autistamente dentro de nós - sem medo - e regressar de mãos cheias, viscosas. Será que quanto mais garimparmos mais sujidade vamos tirando de dentro de nós ou quanto mais remexermos pior fica? Por hoje, deixem as sirenes descansar que já muito berraram em vão. Elas, que nem sequer queriam ter som neste puzzle impossível de porcelana estilhaçada.
                                   
666 Octanas
Toda esta pressão deixa-me num inexplicável estado de transe. Nunca tinha sentido tanto medo e desespero na minha vida e agora quase que parece que nada me afecta. Vou a descer a alta velocidade por um caminho acidentado em terra batida cheio de buracos e pedras e não consigo parar de acelerar, como se soubesse que nada me pode acontecer ou então, já não me interessa. Sinto o cigarro nos lábios de uma forma tão intensa, tão localizada… como se fossem um só, um organismo sedento da chama que tenho na mão. Acendo o isqueiro, sinto o calor do tabaco a arder no meu rosto, como se toda esta maldita floresta estivesse em chamas e eu, impune, cavalgo nas suas entranhas. A cada passa que dou sinto o meu organismo a renascer, a ser possuído pela minha nova alma em forma de fumo, de fogo. Não pestanejo, já vou no terceiro cigarro consecutivo, mergulhado neste ruído estrondoso de chapa e buracos. Dou por mim numa nova entidade, numa interacção Homem-máquina indestrutível. Tenho os pés tatuados nos pedais e um íman no acelerador. Sinto o meu coração a bombear gasolina para as articulações da besta e o cano de escape a cuspir todo o fumo para os meus pulmões. Saio do caminho, conduzo pelo meio das árvores, aqui não há asfalto, não há cores pintadas no chão. Não sei para onde vou mas vivo-o em pleno, feroz. Sinto a adrenalina a fervilhar, os ramos que batem violentamente no meu vidro, as silvas que riscam, com garras infectadas, a chapa, as amolgadelas que tecem o ADN desta viagem, tudo numa escala perfeita, dissonante, que só pode acabar nesta nota, orgásMICA… UOUU…  Bato com a cabeça brutalmente no volante e sinto os meus órgãos a descolar e a voltar ao sítio. Tudo se passou em super slow motion, a árvore a acenar e a correr para nós, os pneus a arrancar a pele da floresta enquanto travávamos a fundo e a salpicar as flores de sangue e carne negra da terra e depois… a sublime colisão. Sem gravidade, cósmica, num BPM híbrido, sempre lento, ora em rotação progressiva de valência positiva, ora a rebobinar. Voei graciosamente para o volante, contra o tablier, num mergulho olímpico. Ainda tenho tempo para virar a cabeça e sorrir para o júri, acenar para o público, sentir os flashes e… Bang! Caio dolorosamente na realidade outra vez, de cabeça... Nem sinto a cara, estou tonto, mas inteiro. Pelo buraco de um dente partido sugo outro cigarro e dou-lhe chama, alma, sorrindo salpicado em sangue.

A casota do Cardume
Carrego uma ânsia visceral de me amalgamar na multidão e roubar-lhes o vazio que assola as suas frívolas existências, feito abutre que se serve do cadáver podre. Vontade de abençoar essa cobiçada privação de emoção com o azedo da água benta que salpica cada átomo da minha agonizante realidade. Ser sardinha no cardume, cão de sarjeta, sem ter que fugir em vão de tudo que me assola e consome… Abdicar de mim. Eu, enquanto contorno, silhueta bipolar que demarca os limites das entranhas e oráculos - que, em festim, se alimentam do que carrego - mas também receptor magnético dos fantasmas que da minha assombração fazem vício, em matilhas. Um banho de futilidade, de gestos triviais e pensamentos curtos… Esquecer tudo isto tendo como terapia o lugar-comum, o espaço de todos… o refúgio de ninguém. Isso sim, sabia bem.
 
Bola de Espelhos
"...Era mais uma sexta à noite e a pista de dança palpitava ao ritmo de corpos que deambulavam em busca de impulsos estéreis mas intensos. Tu, distanciaste-te um pouco da tua amiga como se uma força magnética abrisse caminho para mais uma investida minha na tua direcção. Quando passava no vosso meio e me virei para ti, soltei uma frase cordeal fazendo, tu, sinal que não tinhas ouvido. Há medida que a repetia e mais me aproximava do teu ouvido a tua expressão de desinteresse torcidava o meu pobre coração intoxicado. A cruz da minha volta de ouro gelava-me o peito até que, de forma inesperada, te disse que ficavas bonita de vermelho. Tu hesitaste - talvez não percebendo que estava a brincar por teres perdido o jogo, de tarde, para a equipa vermelha - e depois de fazeres passar cruelmente a impressão que esta conversa não teria um final feliz disseste que estavas antipática, por te doerem os pés. Ao olhar para os teus sapatos conceitrei-me nos meus e avancei errantemente face ao desconhecido, a um torbilhão de zombies que se enroscam ao som de batidas de não pior gosto que o meu penteado... Tu ficaste para trás, assim como a réstea das minhas esperanças. Não em relação a nós mas sim depositadas na possibilidade de me poderes, secretamente, desejar e toda essa deslumbrante máscara deixasse fugir uma pista. Não mais tentei arranjar coragem ou motivo para te seduzir. Há pequenos momentos que não precisam de ser relevantes para mudarem fatalmente o rumo das coisas. Continuarás bem de vermelho... e eu a sabe-lo."

André Santos (incandencência no eixo da transcendência)


Que incandescência … que no eixo da transcendência, permite-me a mim, flor do mal sangrar sem nada? Eu Até então vivia longe, envolto em cordas de aço. Quem até então, a não ser eu? Podia notar? Não sei, penso ninguém. Fortificas-me pelo teu sol … mundo. Expirando dióxido de raiva, inspiras-me pelo teu intenso brilho… sol. Inspirando o que não necessito… mundo. Pratico assim hipóteses de vingar. Será então provada a minha existência. E com a tua morte, permanecerei com a minha falta de vontade tua, mundo… Sei, penso eu, substantivamente declaro poesia retórica… Aldrabada, violentara todos os cancioneiros. Sem maldade apenas por tentativas. Não sei, penso ninguém. Não sei o que digo? Não respondo com não. Sei, evidenciar a natureza morta. Distinguir a luminosidade... E quando se perde o dia ganha-se o escuro de emoções tenebrosas. Quando se ganha a coragem… Evidentemente eu sei... Teremos um dia … De a perder… Fortificas-me pelo teu sol … mundo. Expirando dióxido de raiva… Inspiras-me pelo teu intenso brilho … sol… Inspirando o que não necessito … mundo.

Antonio Costa (Levanta-se, arrastando-se pela roupa do leito)


O Gordo
E ele acorda… de novo nos mesmos lençóis, da mesma cama, do mesmo quarto, do mesmo apartamento emprestado ao cheiro a mijo e ovos.
Levanta-se, arrastando-se pela roupa do leito completamente ensopada em suor. São 16h30m.
E lá vai ele, até à cozinha, põe a aquecer a refeição congelada que comprou no mercado da Filipa, e espera, Pega na garrafa de ginja e roda assim mais um dia… quão agradável é o anti-reboliço de se ser quem é: um gordo peido ignorante com o 11º ano feito em artes, curso que honra sempre que se lembra, gabando a genialidade de Kandinsky ao vizinho do rés do chão.
Decide ir acompanhar a televisão quase inaudível, sentando-se no sofá e lentamente, o seu cachaço húmido escorrega para uma posição quase tão onírica quanto o próprio sonho e adormece.
Quanto mais se deixa ir naquele rio de preguiça, mais denso se torna o vulto. Ouvem-se ainda os barulhos do que se passa lá fora. Surge a vontade de ir fechar a janela e as portadas para não ouvir os putos a brincar na rua, mas esse ímpeto é imediatamente abafado pela consciência de que para isso teria de se levantar e então… cai.
O sonho não para de se adensar. Quão mais embebido nessa fantasia está, mais lúcido da sua consciência ele fica, e neste antagonismo de espíritos, o seu subconsciente dança para ele. Mostra-lhe os seus medos, os seus fortes (ou a falta deles), as humilhações e as situações pelas quais esperançava. Viu de relance o primeiro beijo que nunca teve e voltou a contemplar o fundo da sanita que provou no 4º ano. Doces incansáveis memórias,
O gordo conseguiu sentir as lágrimas a escorrer-lhe as faces e a desenhar-lhe os contornos das bochechas. Eram as mesmas lágrimas de um primeiro dia na primária. Sabiam ao mesmo sal.
Normalmente seria este o momento para masturbações literais e figurativas por parte do nosso pesado herói, mas essa vontade “oh” tão prioritária era agora apenas um gesto de atenção daquilo que ele tentava recusar ser.
Este sonho convertido em pesadelo, ou simplesmente disfarçado, surgia-lhe tanto como uma humilhação perante si mesmo, como uma espécie de dádiva.
Seria este um ponto de viragem ou de ebulição? O primeiro era apoiado pelo seu Wolffismo e o segundo pela sua insegurança quanto a qualquer optimismo dirigido à sua pessoa quando a sua vida nunca lhe deu motivos para tal.
“A verdade é que nada é nada. Caímos todos no mesmo erro de tentar atribuir um significado maior aos acontecimentos que, na maior parte das vezes, não vão realmente para além disso mesmo… Acontecimentos.” E lá divagava o Gordo, na esperança que fosse este o fim do que lá era toda esta parafernália de anormalidades.
Fosse esta a última vez que o Gordo enfrentaria algo de que não gosta hoje… antes o fosse.
O remoinho onírico não parava de o agitar… de agitar quem ele é, quem ele pensa que é e o seu corpo. E as repercussões eram reais. Ele sentia as pernas suadas a colar e a descolar do cabedal do sofá de cabedal, avermelhando as coxas, assemelhando-o (ainda mais) a um frango por cozer. Quão fraco se pode ser para tal semelhança acontecer?
E nisto, nem a propósito desta última comparação despropositada, o microondas, toca. O Gordo tinha-se esquecido que tinha deixado a refeição a aquecer. Acorda agitado por dentro, imóvel por fora, e corre (lá à sua maneira), tropeçando num canto do tapete, até ao microondas que parecia já ter feito o que tinha de fazer há bastante mais tempo do que se pensava.
Enquanto punha a refeição numa travessa de quatro para o almoço de um, reflecte naquilo que lhe foi dado no sonho. Que lá, tão malvado lhe parecia. Lembrava-se do quão inusitado era o vulto que o cobria e quão o irritava a imprevisibilidade daquela visão. Sobrou do gordo um banco partido e caído, perto de uma gosma que põe o sujo em branco-sujo no jogo de azulejos branco e uma gravata pendurada a uma daquelas ventoinhas que se põem nos tectos. E ele acorda.

Bernardo Barbosa (o REI EM lançou uma lei que obrigava todo o escrivão)



Redondez O arquitecto chinês era conhecido pela sua ousadia de formas e requisitado internacionalmente para os projectos mais vanguardistas. Era visto pelos seus pares como um grande homem, um artista de proféticas propriedades que traçava as casas mais criativas e os prédios mais vistosos. Mas na discrição da sua mente, o arquitecto enojava-se pela natureza do seu próprio trabalho: ele queria ser um pássaro, um errante pensador, um viajante incansável, mas dedicava a sua existência à edificação de imóveis. E “imóvel” era de todas, a sua palavra menos preferida.
  Um dia o arquitecto deitou-se na cama e adormeceu após longos minutos. Veio-lhe no sono a inspiração que esteve na base do seu mais notável feito: uma casa viajante. Escreveu-a com uma ciência impossível e apresentou-a aos seus contemporâneos, que julgaram ver no arquitecto, figura indiscutível da seriedade, uma ligeira embriaguez de espírito. Mas o sonho tem muita firmeza nas vontades do homem, e a casa viajante esteve pronta em menos de um ano. Era mistura das feitiçarias mais absurdas e das ciências menos concretas e passou a ser o lar do arquitecto chinês.
   Assim, todas as noites, este deitava-se no conforto da sua cama e viajava, não só pelos psicadélicos caminhos da sua mente mas também pelas estradas reais da existência, que essa estranha espécie de casa ia calcando. E acordou o arquitecto na primeira noite com o seu pijama de verão apenas para descobrir, lá fora, um cenário com pouco de estival. Durante um ano, o chinês descobriu meio mundo e acordou todos os dias para encontrar um país, um povo e uma paisagem diferentes. Despertava inundado de curiosidade, e assistiu, da pequena janelinha do seu quarto, aos monumentos italianos, aos fiordes escandinavos, aos desertos africanos, às praias portuguesas até, porque não. Como uma droga, este inédito formato de vida, que tanto prazer dava ao arquitecto, gerou uma dependência. Tornou-se este sujeito o mais viajado de todos os viajantes, e ironicamente o que menos se mexia. Passou a viver das conservas da dispensa e partilhou as suas magníficas experiências com mais ninguém senão o seu gato. Era uma vida bela, que se renovava a cada noite de sono, em que cada dia deixava descobrir uma multiplicidade de novas coisas, era um perpétuo excitamento, uma eterna cavalgada rumo ao desconhecido.
   Surpreende-me, casa!, dizia o arquitecto chinês do cimo dos Alpes suiços, e a casa logo o fazia acordar numa praia das Caraíbas. Como a vida é boa, pensava então ele, guardando a sua felicidade apenas para si, reservando as suas experiências apenas à sua memória.
   E um dia, depois de acordar de um sono profundo e de sonhar com o cosmos, o arquitecto contemplou com surpresa, sempre através da sua janela, a inconfundível face da China de onde tinha partido. E compreendeu nesse momento que não fora a sua casa a rodar à volta do mundo, mas o mundo à rodar à volta da sua casa.

REI EM
Há duzentos anos atrás o REI EM lançou uma lei que obrigava todo o escrivão, diplomata etcetra a escrever o seu nome em letras capitais, maiúsculas bem visíveis e orgulhosas, que destoassem das restantes letrinhas humildes do mesmo jeito que o REI EM destoava das gentes e das coisas sobre as quais reinava. REI EM morreu agora há uns bons anos atrás, como podem concluir os leitores mais conhecedores da brevidade humana; mas esta lei permaneceu e obriga-me, portanto, a aniquilar todas as hipóteses deste texto se notabilizar por um estilo limpo, ausente dessas porcarias que compõe a literatura moderna.
                                                       erna.
                                                ern.
                                                      er.
                                                          e.
   Foi por o REI EM se revelar um personagem tão aborrecido (e por vários outros escritores – esses escritores a sério – manifestarem a mesma opinião) que decidi precisamente escrever sobre ele. Destina-se este pequeno espécie de conto aos leitores que, necessitados de sono mas igualmente carentes de barbitúricos, gostariam de adormecer.

   Nasceu menino esse REI EM, pelo menos enquanto era bebé mamava inocentemente a teta de sua mãe. Não bastou muito até que as tetas alvas da mamagem fossem as do povo, que de mamas era liso que nem uma tábua, mas que mesmo assim era roubado até o mamilo se colar ao osso. Essa célebre lei, que acaba por motivar esta palavragem toda, fê-la lei o REI EM num dia de Verão quente; segundo relatos adquiridos, que é como quem diz, especulações inventadas por mim, o REI EM fê-lo em resposta à arrogância de Deus em deixar explícito que se escreva o Seu nome e qualquer referência pronominal com uma letra maiúscula no começo. A questão é que dizer Deus assim desta maneira não é nada que me preocupe, mas REI EM já é coisa que fica feia, e não posso fazer como com Deus e escrever deus, porque no caso do rei existem complicações legais a enfrentar. Mas o REI EM deixou bem assente nos registos históricos outras suas qualidades, como a do narcisismo. Numa medida que empregou cerca de cento e cinquenta homens fortes, ordenou a carregação de espelhos em seu redor, a todas as horas e momentos, para que pudesse sempre olhar a perfeição do seu rosto e o seu elogiado corpo ou faustosas roupas, um de cada vez porque só há histórias de reis nus e vestidos, a semi-nudez é coisa que não importa à nobreza. Isto, a ser verdade, só consegue atiçar a minha imaginação a considerar os momentos mais desconfortáveis como a cagadela real ou o xixizinho real, ou mesmo o sexo com a rainha, que coitada, tinha o rabo exposto em demasiados reflexos. Outra vez ainda forçou o REI EM todas as donzelas do reino a manifestar sentimentos de paixão aquando a sua passagem; isto claro, precedeu a lei dos espelhos, que não permitiam ao rei olhar para as montanhas, quanto mais para as donzelas.
   Eventualmente, os habitantes do país do REI EM habituaram-se à série de leis absurdas do jovem monarca, que se rebeliava contra os seus conselheiros e contra uma corte que, depois da lei das vestimentas de urso (que obrigava todos os nobres, excepto o rei, a vestirem-se de ursinho de peluche) deixou de parecer tão séria. Há quem diga que a atitude rebelde do REI EM influenciou o movimento punk da década de 70 e o manifesto anarquista, mas quem o diz é certamente parvo, porque tudo isto não passa de um delírio imaginativo assinado por mim. Prossigamos com ele, então.
   Mas o REI EM envelheceu. E os seus interesses mudaram. O rei deixava de ser o jovem inconsequente que todos conheciam e transformava-se, aos poucos, num sujeito culto e digno de elogio. Gostou de arte e pintou portanto retratos, horríveis desenhos de monstruosas criaturas (que eram antes de serem tela, belas mulheres) que eram elevadas pela crítica, completamente imparcial, a estatuto de obra-prima. Gostou depois de música e compôs as mais horríveis composições, que nem as melhores orquestras sabiam enobrecer, mas que o público, absolutamente iluminado, não fartava de aplaudir. Gostou de literatura e escreveu os mais básicos contos de crianças, que os intelectuais gostavam de considerar clássicos instantâneos, arranjando significados simbólicos inclusive para os erros ortográficos. Eventualmente, o REI EM seria conhecido não só como um ditador narcisista, mas também como um artista de grande sensibilidade.
   Foi neste clima de falsa apreciação que o REI EM, agora um sujeito sábio dedicado à cultura e a medicinas orientais, faleceu. Consta-se que estava a pintar um quadro quando sofreu um derrame dos miolos via olhos, motivado por uma vida de contínua espelhagem. O quadro, tão inacabado quanto tão pouco começado, está entre os mais conceituados da sua obra.
   Mas a questão continua a inclinar-se sobre mim: de que me valeu este esforço dos dedos. Pois vejam, REI EM continua a ser uma dessas palavras chatas, qual sigla internacional, que sou forçado a escrever ASSIM. Já escrevi cartas aos familiares directos do rei, que não me ligaram nenhuma porque estão ambos presos por consumo de cocaína. Já tentei todas as organizações internacionais de que me lembro, mas todas se encontram demasiado ocupadas com assuntos mais sérios. Já tentei inclusive a Santa Fé, mas eles não me desculparam aquela piada com Deus e até começaram a acender a lareira quando me viram. Restam-me que opções. Eu digo-vos: ser uma fora-da-lei do texto escrito, que tal como os ladrões que roubam para matar a fome, se insurge contra a lei por motivos de desespero. Talvez uma revolução se inicie de ora em diante, e em todas as seguintes edições de tomos históricos e volumes enciclopédicos, as referências ao REI EM se façam de uma forma menos grosseira para o estilo. De qualquer forma, o anúncio foi feito e a palavra cá vai; desculpem-me os mais ofendíveis, chegou a hora da revolução: “rei em” (intitulado assim, com minúsculas)

Boris Nunes Martins (Os selvagens destilam cactos no alambique)


Destroços
Sente-se no ar um prenúncio de morte! A calçada molhada faz os cheiros mais intensos. Os músculos retraem-se enquanto caminham juntamente com a chuva. Os sítios esquecidos são visitados para matar memórias antigas. Os bebés que nascem neste momento; estão todos juntos na sua solidão, característica inata dos Homens. No cérebro confuso a dor confunde-se com a vida, o choro cai pela face escura e triste, os ponteiros do relógio estão parados enquanto o tempo se perde em si mesmo e as lágrimas continuam a brotar das nuvens cinzentas que escondem o Sol.O homem está perdido e a vida flui como a areia de uma ampulheta, eternamente sozinha nos destroços da cidade destroçada, simulacro do coração humano.

  Os selvagens destilam cactos no alambique e inventam novos deuses, vozes interiores que cantam o fado, porque nada mais há que fazer. E os copos que se vão esvaziando vão ficando em cacos, o vidro partido é utilizado para fazer cicatrizes que demoram a sarar, e põem as paredes manchadas de sangue
  Eu que crio deuses faço uma ode ao homem solitário - Abandona a estrada deserta. Fecha os olhos cansados. O sono que vem desperta a tua alma imprudente. Que o bagaço põe quente. Os teus sentidos arrepiados. Larga a tua vida irreal. Põe os teus pés no chão. Descansa o teu corpo no areal. E deixa que a chuva te transporte. De encontro a quem te espera, a morte. Na dúvida de que encontres a razão.

 _   Dou-te beijos até te partir a boca
-        Devoro-te a mandíbula
-        Enfeito o teu coração com ossos
-        Dispo-te na noite do meu olhar
-        Bebemos o sangue com que celebramos a morte
-        Olhamos a lua e duvidamos
-        As nossas caveiras desmancham-se de riso
-        O humor dos teus olhos desfaz-se na terra onde enterramos os nossos corações
-        Caminhamos no escuro e não proferimos nenhuma palavra
-        Os morcegos perseguem-nos com o seu voo cego, num céu com a cor ténue do fumo que enevoa os nossos pensamento. Temos dois cães que nos seguem para todo o lado e fodem as cadelas com o cio
Nenhum segredo ele arrotou.
Nenhuma confissão entre os soluços. Só aquele murmúrio constante dos loucos em declínio. Com olhos vazios, olhos cegos
  Balouçando-se ligeiramente na cadeira. Ao primeiro murro bateu com a cabeça no chão partindo o nariz. O primeiro pontapé trocou-lhe algumas costelas de lugar
  Na quarta investida parou de murmurar. Na sexta, já pouca coisa se distinguia do seu corpo. À décima investida pararam. Restava um montículo de tripas e sangue junto a uma cadeira partida. O pó assentou… E então, naquele quarto salpicado de sangue…

O escorpião controla a máquina que me controla a mim. Mora num deserto em cima duma rocha. Onde leva os dias a ler o manual e a carregar nos botões. Eu vivo numa jaula, tenho os olhos secos e as mãos ensanguentadas. O homem que me observa está com uma expressão de entendido. Passam por aqui peritos do mais alto gabarito. Os seus óculos estão embaciados da sua respiração ofegante
 Eu sou alimentado com laranjas. A minha merda é verde
 Ele aproxima-se das grades e eu afasto-me. Fui treinado para este tipo de encontro
Ele não tem olhos e no entanto trespassa-me com a sua presença. Diz que o dia está a acabar. Que tenho de me ir embora. Para pegar na minha mala e pôr-me na estrada. Longe de estar aqui. Tento ver a estrada no precipício que leva a praia
O sol põe-se, está frio, alegre, triste, nocturno. Eu amo-te! Mas e tu? Também esperas a próxima música?

Carmen Serralva (Numa aldeia pobre, com Invernos rigorosos)


Ciranda, a costureira. Numa aldeia pobre, com Invernos rigorosos, onde se vê o fumo a sair de todas as chaminés e nas ruas apenas os cães vadios que procuram o seu sustento nos bidões quase vazios à saída da aldeia, as pessoas, modestas e honestas, viviam entre os serões algazarrados nas salas de estar comuns das casas e os dias compridos a trabalhar na pequena leira antes e depois do emprego na grande estufa de tomates do patrão. A grande fatoria que no princípio alegrou as pessoas, trouxe problemas primeiro, porque as pessoas não se alimentam sempre a tomates, também têm que vestir e calçar e, se bem que a grande estufa trazia novos postos de trabalho, era insuficiente para as necessidades das grandes famílias e,
pior de tudo, já não havia mais culturas de algodão, os pastos eram mais cada vez mais pequenos e o dinheiro que era suposto ser para os melhores acessos, foi usado para construir uma estátua monumental ao patrão, o que fez com que as pessoas ficassem no mesmo isolamento. Havia uma mulher a quem a má sorte tinha deixado sozinha pelo acidente do marido na trave pendente à entrada da estufa, acompanhada somente dos gatos que cirandavam a sua casa, e combatia a pobreza, costurando roupas para os aldeões. Dia e noite passava com a agulha na mão, mas quando as pessoas deixaram de ter dinheiro para lhe pagar, também ela começou a ter problemas em comprar a linha para entrelaçar os trapos. E os gatos em sua casa, sem nada para comer, aumentavam a chiadeira e começou também ela a falar com eles em jeito de mios. As pessoas que iam lá ouviam muitas vezes interjeições miadas. Uma vez quando varria o chão cheio com pêlos compreendeu que podia fazer fio do pêlo dos gatos. E experimentou fazer umas roupas para ela que resultaram às mil maravilhas e até tinham um bom cheiro. Então decidiu exceder-se e  fazer uma roupa para ocasião especial. Quem usava as vestes de Ciranda gostava do seu trabalho que era ainda mais barato. Mas em relação à estufa de tomates, as pessoas da aldeia caíram numa depressão colectiva, já não mais se trabalhava com gosto e havia sempre uma extra-produção de tomates, vazada pelos aldeões que compravam o produto a baixo preço para alimentar os porcos e as vacas. Ainda por cima, ouviam-se novos rumores de que a fábrica ia substituir a mão-de-obra humana pelos eficientes manápulos das máquinas robotizadas. Um Inverno mais rigoroso, um verão com menos água potável e as pessoas sem muitas alternativas começaram a falar mal do patrão e a pô-lo de parte em todo o lado deixaram de falar com ele. Uma nova greve começava, não com o deixar de trabalhar, mas a ostracizá-lo sempre que se cruzavam com ele: «o patrão anda a fazer dinheiro com os seus tomates», «os tomates do patrão são grandes e vermelhos, mas só porque ele os estruma», «sem estufa o patrão ficava mas era sem tomates». Então o homem quis fazer alguma coisa para que gostassem dele e decidiu fazer uma festa para toda a gente da aldeia e como era uma festa da aldeia em vez de comprar um fato, foi à costureira para lhe fazer um traje fino. Às duas por três, a costureira quando viu o fato de ocasião que tinha feito para si desatou a rir-se durante meia hora, depois entre guinchos e mais guinchos riu, porque tinha descoberto um fio que denunciava malandros, porque o fato que usava todos os dias estava perfeito, nenhuma costura tinha cedido e também nenhum dos seus clientes se tinha queixado, mas o fato deixado no armário sem os humores do corpo estava desfeito! Quando visitavam agora Ciranda e falavam da festa ela dizia que o fato que preparava para o patrão era especialmente para uma pessoa que se preocupava com tomates e falavam também da raiva que crescia pelo patrão que não percebe nada de organização,
que ele era como uma criança a quem se dá dinheiro e que vai gastar o dinheiro em doces e das coisas que iam fazendo falta. E as pessoas de repente ficaram contentes quando perceberam o que se ia passar na festa. E no grande dia o patrão tomou a palavra e disse que sempre foi do tipo de pessoa que faz por satisfazer os pedidos das pessoas. Quando ele acabou de falar a banda começou a tocar para que não se notasse a falta de palmas e as pessoas foram ter com ele e começaram a fazer pedidos. Ciranda também se aproximou dele e tocou-lhe no braço o que pôs o homem a correr a sete pés, e quando ele ia a passar entre as mesas do salão, engatou o bolso das calças numa cadeira ao que se rasgaram os bolsos e quinquilharam as medalhas da sorte feitas de oiro. E quando olhou para trás e viu a multidão a dirigir-se esfaimadamente para ele tropeçou noutra cadeira e as roupas desfizeram-se deixando o homem nuzinho tal como deus o trouxe ao mundo. Então estalou o riso de toda a gente: «olha quão orgulhoso está o patrão dos seus tomates, até os pela!». Com isto, desapareceu o sr dos tomates e mais a sua estátua. A estufa foi transformada num gatil e não mais se falou em tomates. Passaram a vir pessoas de longe para comprar as vestes bichanas de Ciranda, a costureira remediada. E na aldeia passou a haver mais gatos que pessoas e as pessoas adoptaram um novo dialecto.
Tontural Sôr doutor Arlindo, meu compadre, bons olhos o vejam. O que me traz por aqui é este mal que me atazana, dia e noite... já não sou a mesma pessoa, vossemecê mesma conhece-me, já nos conhecemos há quê? dois dias? E eu conheço-o tão bem que sei que tudo vai bem consigo, não lhe acontecem estas coisas que me estremecem. Eu olho para o seu figurão e vejo que está bem, robusto, nem preciso de inquirir-lhe como passa. Já não consigo aguentar-me vinte minutos sentados. Acredita que como de pé? Vem aquele zumbido nos ouvidos, só passa quando me mexo, se encontro a minha atenção em nada, nada de nada, aparece-me um zumbido, começa a soletrar me coisas, mas o pior é que não sei em que língua é que vai sair. Já tentei conjugar o tipo de sussurro a uma língua, mas não há nada para estabelecer um sincronismo. E o pior é conseguir juntar as letras todas e depois da palavra estar formada, perceber o sentido. O que posso dizer que na maior parte das vezes sucedo-me bem. Sabe, eu tento fazer algumas coisas e para sair deste estado vim a falar mais com as pessoas mas elas falam e a sua voz ressona na minha cabeça como num quarto de tecto oval e olhe, da ultima vez que estive a falar com a minha mulher, ela estava a falar do fogão, e eu estava a pensar que tínhamos um dragão em casa, depois, prontux, la nos entendemos, mas sabe o que aconteceu depois?! Não a deixei fazer omeletes porque achei que deixávamos de ter gás. E o gato que para lá guerreia, sempre a mandar vir, ja me disse que também não lhe satisfazia esta situação. Eu sei que não eh maluqueira, é só um mal estar prolongado. E sabe o que me vem à cabeça? Tomar uma turra, tontura com turra se paga. Não é uma turra, não contesto que um abalo nesta cabeça não acalmasse esta moléstia do silencio. É óbvio que vossa excelência sabe o que é uma turra! Então, todos os dias vou para o meu terraço e vejo-me a subir as escadas para as nuvens onde eles fabricam os lápis de cotão, e eles dizem que eu não posso levar um lápis daquela categoria sem mais nem menos, é preciso distrai-los e depois só os posso levar com a ponta dos pés, o que é uma grande maçada porque tenho de andar ao pé coxinho o que me deixa completamente fatigado. E la me ponho a tocar o tontontonton e eles dançam tanto tanto que todo o cotão fica em reboliço e começa a nevar nas telhas do meu curral. E ai tenho sossego! Acho que é do ton! Ai, esse tonton é a dose que eu preciso para me sentir com os pés na terra. E aí, vem um som da terra, pouso os dois pés e ouço o curral a urar. Sôr doutor, é a coisa mais fantástica que já ouvi, os meus rebanhos oram em forma de urrus e não consigo evitar de me juntar a eles. Ui ui. Dessa vez é que foi Sôr Arlindo, senti-me curado, cheirava a relva, saltava a água, exprolinava no rebouxo da aldeia, maravilhas! Pé numa, pé ah direita, já sem sussurros, sem coisas esquisitas, senti-me mesmo uma pessoa comum, a costurar os rebentos dos poros do meu cabelo. Sentia-me um existente integro. Ouvia as pessoas falar comigo, mas depois percebi que esperavam que eu lhes dissesse alguma coisa, tinham-me feito perguntas e eu ainda os ouvia a falar pelos cotovelos. Então percebi que a resposta que estavam ah espera era um assobio pelos dedos. E fui para casa com um par de mochos na mão e apresentei-os à minha mulher e foi ela que me disse, vais mas é ao doutor. E aqui estou eu a despejar estes meandros como quem se revela. Eu sei que o senhor me quer receitar calmantes, mas se me faz o obséquio...  sabe... Eu sei que o que me faz falta... receite-me um tontural para tomar com o caldo e alguns desses cigarros medicinais com substancias psicorurais. Não lhe peço mais!
Acácias swarosky
 / mas tu arde / prepotente macio / repousando no marfim de luar vermelho engulo o líquido e no fundo garrafal / se vê o degrau fundamental / diagrama estrutural figura conjugal / espectro teatral / a sombra que em ti guarde / o estigma da tua tromba / o teu anil cobarde / não mostras o cu / não lhe dás agua fria / deixa cair e reluz a pila que em ti se enfia / gaúcho desintegral / como isso aprecia / redime-se ao total / suspira-me e esvazia / desfruta agarra duro as pernas / espreme.as com as unhas / diz me as alcunhas / desconheço as anilhas que mesmerizo com o cunho / que deixa disformes meus punhos / mas morra / a minha boca é testemunho / fomento teus esgares / cipreste de folha perene
Lamaçois e andrajos
pé de cabra / lambei os dedos da vossa cama assim no pântano como nas virgens / se nada é estanque / nada há que me manque / só eu comigo estou / e assim conheço o meu mijo / e quem tem a doença das víboras / é vivípara venenisca / apruma me, meu pêssego /
 meu vímeo improvisco / com o som das pedras apara-venho / serpente que da tua lentidão insulcas / o sibilar nas suas costas / como quando sabes insultas / o sultão que te recolhe / culpas? - chupa-o -quem quer vergonha a quem lhe falta a alma? / lambes os beiços e contratas o estômago vazio / fome ou apetite? / sapatos de empreiteiro ou pés de peixeiro / aguças o espinheiro / cravo arruaceiro / meu bravo Sebastião desaparecido / pessoa, quem sou eu? / despropria a ranha / arregaça a cona / rola que arreganha ranho de peçonha / culpa atirada / fico eu mais dura / mas o desengano aparece e morde me o seio de lado / descoberta que alumece e bate bem do rabo / não é por ti, somos nós / que por outro arreganha / arranha a teia e sorri / apenas luz entranha / sei para que me queres / e cedo doce à cana / despertas os prazeres / que rejubilam os teus lazeres aos quais não falta laia / mas que dizem de deveres / crise é para quem não crê / mas lamento teu alento que por mim tem a mana / e que sempre vê e é / presta a quem a tenha / quero fazer te rir mas vê a tua lua nutre os meus ouvidos.
zâmbia dúbia
 ciganices zubizaba, dubai, ainda bem que aproveitaste a energia do
calor do momento
para a fazer a tua tour ada, haja, cá fé
se toma com moca, enquanto a moca não bate, os
batentes esperam imóveis e maçãs de prata cobiçam as patas.
sou pá teta és teta rã beta pi teca peca teça messa des peça alto tez mor guiza relva da selva salva zebra alva, dici calva. cavo cravos. fun teaser, fun
tesa, fan te sia, as voltas as voltas como a hélice chapelar, voam
pensejos restos de desejos. amanha vou a trás os mon tês.
bis ôntes ontem sempre rente, rezo ranço. ar eja, eia
sol feia, maneia da mania. encontrei ontem
umas lentes de sol para aplicar nos
óculos, tenho de continuar com
estes.. trichinobenzoar,
 fantasia de barca
parca.. triste
em riste,
tape te
per sã.
eu e a au
gusta fomos
com uns gregos
que tão cá de erasmus
fomos visitar uma igreja que
eles queriam ocupar que pertenceu
a confraria de jesus de alem, do outro lado
 do rio quem ta a passar pela marginal que vai do
 Freixo para a ribeira, não sei se vai dar para levantar o
cheque, não temos nada que diga que somos do mesmo agregado,
se calhar tenho que ir à segurança nacional.  checa averigua, verga, põe em cheque, atenta ao roque, sem lei nem rei, provoca a prova. a men compras de hi jack material desmaterializado, ouço perdoo e enjoo o doce do roubo. Cuidado com os mosquitos das aguas paradas, e o cancro dos fritos, lago baixo, chapinhar, pinho ro busto, peito do rês pinto tem te todo, das unhas
ao nariz essence.dia.rio prece a prece prresse com pressa
 enquanto não adormece / ralece parece cremesse
apostece moleque cresce e acontece. na volta
creme less. bes unto pop junco, fusso
ou funcho? damn inha al
mondega adega
 dega dega
 diga
 dig est
ce que esse
despenteia peia
peia, em pola pula poda
ape.no-eia rareia (apeneia do ape
da noia - moi-a ou roi-a ate a jóia) - moi au
 roi jusqu'a joie - true through tróia trégua. s h
e n e m e i a pompeia trassa graça, traça grassa, troça
grossa, ape trace apetrecho entrançado. as vezes trinco.
as vezes brinco. as vezes feira. as vezes teia. quem souber ler
que leia, sem mente não mente, alumeia a verborreia gabiru de geleia per fumia
Desculpa o invaso
o corpo remexe-se à invalidez do desdém ilimitado do que tu conténs. contas-me o cansaço e eu consto na tua lista de bendizeres, mas o que é dito é iliberal  nem sempre ilibado. seguidamente abrem-se as pernas e de desmandro as flores que sao maceradas e desculpadas do seu veneno. Podias esquecer te de ti, esquecer a tua dor, esquecer e abraçar-me, beijar-me, denunciar os meus caprichos enquanto eu aliso as faces do teu limiar. o orgão prolífico, o beijo roliço, a força da imensidão = dispersão do isolamento + inserção conceptual
Minhocas de absinto
A criança de Piaget / Tronco da tropicalidade / Extrapula à mercê / Da vossa crapulidade / Encosta, se mostra o quê? / Pontifico a prontalidade / E se vais perguntar porquê / Remonto à igualdade. / Alienação de quê? / Se tudo é espontaneidade / A teia tece / A troça da fealdade / E que importa quem diz o quê? / Onde sai na masturbarde / Consumo não para mim,
Mas para minha expressidade / Quer demonstrar por fim / Que abstenho individualidade / Cria, espeto / Com respeito, correcto / Bem, mal, você / Passoa para disparidade / Amém, porquê, porquê?
Sincronismo
 Dita,
Desdita / O que é isso da pluralidade do ser? Tinha a noção exacta de como se  
penteava
As néscias do resto do lanche / Olival / Psicologia das vidas comuns
Desvalorização do valor permanência – redundância
Telenovelas brasileiras = microondas
Estilo abusador - Sair da merda
pelos próprios pés
the bride and
the broom
 a despersonalização e a morte

Hyaena Fierling Reich (Chasing what you’ll never know)



FRAGMENTS FROM "VREIA" 2011
1. subjective – objective Castor and Pollux feed the morning need for a fix against patience, suffering, despair. the morning air cools down the fevers of the night, spent in half-lucid precocious dreamland, long lost memories kept aflame by the thin, muslin-like matter of dreams. waking shouldn’t be so hard - but after months waking way too early it’s always sweet to stay in bed dreaming away. awake, no more of the lucid hallucinations, and motions seem to follow the pace of invisible flying fish wandering about. the walls of noise now clearer, the scream of the city far away, and melding into the core of daytime reality is now an easy task. but still the morning blues cling, like a heavy damp satin gown, and hurried I try to shoo them off, away from the nuclear fields where I dwell.

2. subjective Chasing what you’ll never know. chastising the desires you have no idea what to do. a man, alone, tenderly chases the ghosts of his memory. it is not in fear that we dwell in strange places, haunted by a thousand nightmares we know not the beginning nor the end. infatuated in poison, shuddering at bizzarre thoughts, irises gleam as the shadows dance and move in front of us. no one sleeps tonight. it was the ghost of an irrepressible desire - the shadow of the hunt for an implacable desire - that held us down, still shivering, covered in sweat, eyes flooding with tears of emotion facing our own naked reflexions in the antimonium mirrors. Away from the shadows cast, hunters for dreams chase the ghosts memory did left behind, still gleaming, still panting, still breathing. a quest without end, a desire that shall not leave these bodies until their last breath. a man, alone, tenderly chases the infatuated ghosts of his own melancholy. He walks into an ocean. I am the ocean.

4. objective The train turns and turns again, in an endless journey that never seems to stop. drops by in every station, millions of people get in and out, only you remain sitting down, watching carelessly by the window, until something gets your eye and you follow it. the noise of the carriages takes you away almost until you get sleepy. stations come and stations go and it’s as if your journey had no end, because you never get up to leave. until the last station. it’s a wrap. you get off the train and get into another train into a different destination, but always inside a train, never leaving until the last station. and in the last station you leave into another train into another last station. running away through the map, journeying through the land with no other destination than unknown. looking for a stranger to join you somewhere. they never seem to arrive. but there you go. hopeful of your desire and grace. 
6. subjective awake, torn away from the thick veil of sleep that tears apart the eyes like luminous beams of the morning sun. winds across the globe never stop - how strong is the spirit - how strong is the soul. passing rooms quietly, ghostlike, eventually entering one or another in sheer curiosity to find treasures of old scattered here and there. the pavement is lukewarm under the bare feet and one foot stumbles, aching, don’t know why. the steps become slightly difficult, a lame walk that reminds of one’s own mortality and how fickle vanity is. all things transitory yet so eternal. the illusion of whatever lasts forever, not
gone, but clinging on the thin string that holds a heart suspended in the air thickened by the vapour of warm blood. it was not now that the third eye opened into lucidity. it was somewhere in time that she decided to never go back to where she dwelt, the obstinate innocence that brought with it tremendous wounds. but if you got enough naivete and if you’ve got conviction then innocence is burning for you. your face, faded into white and alive in my memory, crashes against a thousand mirrors of uncanny fragility that break into million pieces. yet not disfigured, just made real by the contemplation of divine forms, done in fear of being caught and between timespaces where time itself becomes denser and thicker, hectic in its daily routine of more of the same. time leaps forward in an unbeatable speed, and we but grow older. the grinders cease, the almond tree blooms. not getting any younger. Castor and Pollux relieve the morning blues and remind - again- of one’s own mortality like a freshly crowned Caesar. but it is the light coming by the window that reminds that there is still a thin hope, something inbetween despair and suffering, its name is patience. the mother of all desperate waitings. learn patience and understand. the only strenght available to fight despair.

8. objective slowly falls the evening. he is alone in his office. alone, most lonely than anyone else in the world. between clouds of smoke which volutes around him he contemplates…an icon, an image of God, something very sacred, very holy. something, a figure surrounded Herself by volutes of smoke. the same that surrounds him. there he stands, across the years, afraid to reach Her, to speak to Her, contemplating Her in silence. in awe, not knowing the very ancient Geomantic law that he who lost his money lost nothing, that he who lost his love lost something, but he who lost his courage lost everything. where is his courage? died somewhere through the years. though his hair blooms in white already and wrinkles start to show, he is still the blond youngin stumbling in the palace of the mermaid.  and always scared to shatter and abandon routine, the same routine that chains him, a slave to the grind. eternal wanderer, he drinks from an alcohol mire that stinks from a distance. still he hunts his ghosts, still he chases. a man of no sighs. so slowly falls the night. he confines in his cloister of souls to contemplate Her. the only being that can save him from the elusive routine of work home work. with Her, he could be free forever. but does he even believe in real freedom. in what country could he be well received. in what country could anyone offer him true understanding. there are tears in his eyes and a letter in his hand. silent, mute, he worships Her from afar.  the blond youngin in the palace of the mermaid exists no more. but the man of the grey eyes of faith, he still exists.

12. subjective the saints who remain to be seen dwell not in altars, but somewhere inbetween where invisibility cloaks them in hues of strange colours and the sight of the common man reaches them not. few recognize them - and pilgrim to them in awe like migrant birds seeking for a new home in a continent far away. there is an archaic village by the shores of a cold sea where an invisible saint wanders about. the wind in her hair is the same that ran centuries, ages ago, in the inhabitants of that village. the stones are older than her and me, one day she’ll be released from the weight of mortality.

15. subjective – objective I ceased to ask for the nature of this abandonment. I feel, only, the quiet scavenger memory is, harking at my back; I see the folds of my open heart and how the soul (or its shadow) extends itself through a shore of centuries past; I see my footsteps in the wet sand and tell myself: I don’t know myself no longer, yet I accept myself. Still the morning lights can surprise me. I stop at the center of the square near my house and throw the dice freely, desireless of a lucky number.
II... my life, my naked white body, a knife, a man and his fists and may my heart not survive to the attack.
III.... the steppes were covered in snow and the black horses ran freely. the fox and her intelligent nose. I can’t hear the resound coming from the steamy Amur. is the fog growing - or my white hair thrown by the night wind? the patience that vodka brings me. I hope the shadow that I cast protects me from being arrested at the border. again the green deers lower down to my well and stare in my eyes sweetly before eating one by one the red flowers and the half bitten orange Cataclypsa left behind.  
IV. …and once I looked again at the promised land, the earthly goods and the loss, at last, of a rest to which I renounce; knowing that my soul can spin and glow - and me with her - in an abstract yet certain spiral, without destiny, without precise fugue or found origin or that I may be seen or pointed out; maybe by a silver finger. from behind an opaque crystal - something like the image of the sky to the ancient - a strong affirmation of all that is disgrace, rebellious and unkind, cursed-…with all this and since none of this affects me - I mean my time and its metaphors; the perplexity of being and…- I take my own life and put an end to my days trusting to lose the traces of myself, dreaming sleeping, sleeping; sleeping in a desolating lethargy - just like a day offered by excellent wine - that then someone may inhabit and circle my fragile inert body and may bench my ghosts, so alive, implacable enemies of…









V... that first night I was afraid; I listened to my heart for hours, the coming and going of my blood by obscure and fragile paths, my bones becoming smaller. the next night I imitated the sounds of my favorite animals (the lion, perhaps; the wounded wolf) and strolled through the courtyard in an apron while I spoke with my dead father. the night arrived hand in hand with the day, and the day, estranged in its uniformity, took strange tones unknown to me and sealed the windows of my house. my eyes are red globes and large hands cover my face, but I keep reading a book that never ends and that never has been written.... the sky passes, the tempests. if only I could speak to men
my stories would be all the same; the sky passes, the tempests. I am my own dog and I hear a strange music with my ear at my owner’s grave. I am my own dog and the earth is naked. like the graveyards I pass by looking for my owner. what do I care for the sky that passes, the tempests. nobody knows that I am dead and each night I come back to earth. to gnaw the bones of the living.
VII... they say it is now really that a time begins that is free of any chronolic mirage; that there is no other government but the one of the firmly forgotten memories; the silence of the souls, burials at sea and the coldest of mirrors. Well. I am not scared of the discipline that eternity may impose me.
VIII... what other glories could grace me but those that give me the bliss of being known and respected by my neighbour and her serious husband, the so lovely lady that sells me the milk, the bread and some vegetables of her courtyard and the waiter that has never known my name but knows my love for the rosy wine when the afternoon is over and everything ceases to be as hostile as daylight. what glory to never having participated in any death in history and to completely ignore the faces that come on tv screens and say the world is like this or that. what more glory than the books I read and forget so quickly, the jazz-band I listen in the radio or the strange love of a man from Coventry from whom I do not know for years still I love somehow, and really doesn’t know much about the simplicity of my radious day after days.
IX... one day, by your side, I shall cook no more. one day, by your side, I shall work no more. with my daughters and sons I shall not speak; only see them as they enter and leave the rooms. I shall make minimal work; adjust the radio dial, record a thunderstorm, pick a ladybird from the ground, pronounce your companion’s name part after part so that the faded memory of old age won’t fracture me.
X... each inch of my skin is an anticipation of a disappearance that never ceases to accomplish itself. the hours or days, I don’t know. years. my homeland has no limits and is a great fire, in its flames and in its embers. I resist quietly, only to make it a point to the mathematicians of death. a bird - what bird? - beats its wings above me.
XI... well is death. welcome the sharp knife that opens and refreshes the vein; the hand that drowns and remembers an obscure original pain of the bullet that seeks for the heart and finds it already broken.  my image bleeds over the dagger’s blade; my rings in the fingers of that hand and my initials carved at the base of that silvery death. I kill and I love my habits. I bite the apple and the fruit never sours. X.. I am a man of the future, but I belong to the past because each night I secretly open my veins and I listen to the open murmur of my life. it was written that I would be the Alcalde of a small village near a borderline. sitting in the rocks I wrote fair laws and heard the lamentations of women and men. I brought snows to these lands to captivate and taught remote languages to my people that could only use them in games and tricks. I drank the warm wine under the planets of the night and thought about crossing the ocean and come back with a thousand coloured parrots that could make my home rejoice. I have always been serene even if I never really understood what time is. now, after I have written all the tragic myths in the flesh of a woman who speaks to me for thirty thousand years now, since the dawn of time, a part of me wants to bury her in the most sterile of grounds and another part of me wants to hold her in my arms
until we both die. I am a Christ that makes the revolution and is afraid that everything, life - life - is not an unforgettable matter.
XI have had many lives. I have traveled with cases and without cases; alone and in company; to run away or to make place for myself. I know half world and the other half either does not exist or it is marshy waters unworthy of being visited. I have labored in all kinds of labors, suffering terrible masters that only gave me a ceiling, hard bread and half a cup of water to drink and wash myself (even if I had to steal them to survive; also to kill their sons who came to my bed at midnight to demand violent love from me). I have lived many lives. I remember almost all of them. I remember them all, yes. words very close to each other and repeated kisses. yes, I could have done much more. today I sit at the gate of my own life: a little boy eats sugar cane and finishes a game under a ripe grapevine. the zeppelin opens the voyage of the travelling birds in the sky.

Jaime Mirante (Boa tarde, vizinha. Veio ao correio?)


Mapa

    Estava um bom dia para passear, saí de casa cedo e, felizmente, pouco sentia do abuso nos cálices de vinho do Porto da noite anterior. Não sabia ao certo para onde ir, tinha uma vaga ideia, mas não se podia considerar um plano, uma vez que estava disposto a abdicar dessas paragens se a minha vontade assim o exigisse. Como já vivia nesta cidade há cerca de três meses, queria descobrir os seus recantos mais insólitos, alem disso, tinha tempo para me perder. Quase instintivamente, dirigi-me para uma zona da cidade que conhecia mal. Não sabia bem o que ia encontrar, mas queria ser surpreendido pelo imprevisto.
O bairro parecia bastante tranquilo. Os prédios encontravam-se silenciosos. Não passavam carros. À minha frente, calmamente, o carteiro estacionava a bicicleta. Para além de uma ou outra pessoa, do barulho dos carros nas proximidades e de um ou outro pássaro, a rua onde me encontrava estava demasiado sossegada. Sigo pelo meio da estrada até ao cruzamento mais próximo, para ver melhor os prédios e procurar um lugar com mais vida. Quando me encaminho para outro local, uma mulher com aspecto de mendiga dirige-se a mim e pergunta-me se eu quero comprar uns textos escritos por ela. Paro, olho-a nos olhos, tentando antever o tipo de literatura com que me ia deparar, e decido pegar nas folhas, mais pelo insólito da situação do que pela vontade em avaliar o valor de um texto. O texto que li e que recordo foi este:
    a. Espanha – um cozinheiro vê os vizinhos a fazer sexo;
b. França – quatro drogados escrevem um manifesto;
c. Inglaterra – um nigeriano bate na sua 3ª esposa;
d. Escócia – um estudante de medicina é atropelado e decide tirar a carta de condução;
e. Irlanda – uma prostituta tenta decorar um dicionário;
f. Estónia – um pedófilo assiste pela primeira vez ao Sozinho em Casa;
g. Dinamarca – um condutor de autocarros é assaltado;
h. Islândia – um casal de namorados discute;
i. Noruega – um programador decide ficar uma semana sem ligar o computador;
j. Suécia – um jardineiro assalta uma ourivesaria;
k. Finlândia – um bêbado conversa com a sua sombra;
l. Rússia – um camionista atropela um morcego;
m. Cazaquistão – um turista marroquino não consegue comprar cigarros;
n. Quirguistão – um professor de matemática tem um ataque cardíaco;
o. Uzbequistão – um emigrante na Sibéria regressa a casa ao fim de 2 anos;
p. Tajiquistão – um louco tenta fugir do hospício;
q. Turquemenistão – um jornalista russo fuma um charro;
r. Afeganistão – dois homossexuais franceses raptam um jovem;
s. Azerbaijão – uma criança é vendida a um casal japonês;
t. Irão – um pasteleiro apaixona-se pela mulher do vizinho;
u. Arménia – um cão é morto a tiro numa lixeira;
v. Paquistão – um arquitecto é condecorado;
w. China – uma mulher a dias sai do trabalho;
x. Índia – um detective tomou a sua primeira dose de heroína;
y. Vietname – um apostador de cavalos é preso;
z. Taiwan – uma dentista corta os pulsos;
aa. Japão – duas gémeas tentam entrar no teatro depois da hora;
bb. Austrália – três amigos descobrem que têm sida;
cc. Nova Zelândia – um cirurgião sobe a uma árvore;
dd. Fiji – uma égua dá à luz;
ee. Tuvalu – um pescador adormece em frente à televisão;
ff. Samoa – falha de energia em Apia;
gg. Tonga – uma professora de inglês faz nudismo;
hh. Kiribati – um violinista turco tenta comprar preservativos;
ii. Naurau – briga num bar em Yaren;
jj. Filipinas – agente secreto americano dá entrada num hotel de Manila;
kk. Papua Nova Guiné – um caçador atira num automóvel por engano;
ll. Malásia – bombeiro separa-se da mulher;
mm. Indonésia – trolha é acusado de roubo e violação;
nn. Timor-Leste – diplomata é assediado por travestis;
oo. Brunei – pianista perde uma mão;
pp. Tailândia – otorrinolaringologista descobre que é adoptado;
qq. Myanmar – consultora imobiliária vive na rua;
rr. Bangladesh – incêndio em livraria;
ss. Nepal – Físico de Lumbini acusado de corrupção;
tt. Butão – abate de árvores provoca destruição de duas habitações;
uu. Sri Lanka – advogado é difamado;
vv. Maldivas – criminologista inglês compra uma ilha;
ww. Singapura – empresário búlgaro destrói um restaurante;
xx. Camboja – talhante torna-se vegetariano;
yy. Coreia do Norte – Fisioterapeuta atravessa a fronteira;
zz. Coreia do Sul – Cardiologista escreve um livro de história;
53 – Iémen – uma criança é apanhada a conduzir alcoolizada;
54 – Omã – académico forçado a trabalhar na construção civil;
55 – Emirados Árabes Unidos – suicídio no aeroporto de Abu Dhabi;
56 – Qatar – milionário suíço encontrado morto num quarto de hotel;
57 – Bahrein – combate de boxe termina sem vencedor;
58 – Kuwait – homem afirma ser pai de mais de cem crianças;
59 – Arábia Saudita – três mulheres e um deficiente mental presos por conduzirem uma limusina;
60 – Iraque – comerciante de móveis espancado por beber shots de licor beirão;
61 – Jordânia – museu arqueológico vandalizado;
62 – Israel – grande concentração de top-models em Tel Aviv;
63 – Síria – cão condenado à morte por canibalismo;
64 – Geórgia – duas centenas avistam três óvnis;
65 – Turquia – idosa ganha a lotaria;
66 – Chipre – velejador vietnamita morre afogado;
67 – Laos – guia inglês preso por contrabando;
68 – Egipto – criança agride polícia de trânsito;
69 – Grécia – telenovela cancelada causa tumultos em várias cidades
70 – Malta – electricista baleado pelo cunhado;
71 – Chipre – estrela porno desaparecida;
72 – Ucrânia – Ataque de raiva em Yalta;
73 – Hungria – Cineasta envolvido em caso de tráfico de órgãos;
74 – Itália – Apostador de cavalos acusado de prostituir a irmã;
75 – Bósnia – manifestação termina em orgia com as autoridades;
76 – Suiça – Ciclista assediado por dois transexuais;
77 – Bélgica – Padre morre durante a eucaristia;
78 – Eslovénia – incêndio destrói aldeia histórica”


Não passava de uma lista de países e de situação que se assemelhavam a noticias, algumas das quais me fizeram soltar uma gargalhada, mas não comprei o texto, nem sabia quanto aquilo podia valer. Ela vendo o meu desinteresse pediu-me um cigarro e enquanto o fumámos, falámos sobre o texto e sobre as influências literárias. Passado pouco tempo, sem nada mais para dizer, continuámos os nossos caminhos. Durante as horas seguinte andei completamente perdido. Sem grande dificuldade, consegui resistir ao mapa que se encontrava na mochila. Quando deparei com uma estação de metro, parei num banco para fumar um cigarro e consultei o mapa. Com surpresa minha, reparei que já tinham passado nalgumas das ruas por onde tinha andado, ruas que me tinham parecido completamente novas. 


António e Elvira
António – Boa tarde, vizinha. Veio ao correio? Boas notícias? Eu também recebi umas cartas da minha filha que está na Alemanha, diz ela que estas férias vem em Julho, porque tem menos gente, e ela quer ver se acaba de arrumar a casa, que as obras deste ano, deixaram tudo sujo. O meu neto já vai crescidinho e para o ano já vai para a escola. (sorrisos) Mandou-me uma fotografia, quer ver? Acho que tenho aqui no bolso… não, deixei no bolso do casaco. Agora o tempo já vai melhorando, é a primavera, eu gosto muito da primavera…

(entretanto, Elvira, responde sempre afirmativamente, dando os bons dias, sem que António deixe de continuar a falar)

Elvira - O meu filho pediu empréstimo ao banco, para comprar um apartamento atrás do cemitério, mas estes andam sempre a recusá-lo, ele também anda a pensar em emigrar, que a minha filha farta-se de o chamar, diz que tem lá casa para eles, mas eles gostam disto aqui. Dizem que lá é mais frio, e desta idade não conseguem aprender a língua, afinal o dinheiro não é tudo, apesar de o meu neto já pedir coisas. Mas o que mais me preocupa neste momento não é o dinheiro, que graças a deus ainda vai dando para as despesas, mas, esta dor nas costas. Já fui ao médico ele receitou-me uns comprimidos para as dores, mas aquilo só alivia um bocado, depois voltam aquelas pontadas agudas. Já fiz rx, e o médico falou-me da cirurgia, já disse à minha filha que até chorou ao telefone e tudo e disse-me para eu ir ao pé dela, eu disse-lhe que agora nem para andar de carro ando boa, quanto mais de avião.

António – A gasolina continua a aumentar, ainda ontem ia para ter com o meu compadre, queria ainda passar pela loja das rações para levar uns quilos de ração para as galinhas, e depois fui por gasolina e é que eu vi que está a um preço que não se pode chegar, antes eu punha 10 euros e aquilo dava-me para eu ir e voltar a Portalegre agora dou duas ou três voltas e aquilo fica logo na reserva. Eu até já pensei em começar a usar a bicicleta, e também faz bem à saúde, mas as minhas pernas já não me ajudam muito a subir até minha casa. Olhe, vamos andando e vendo. Se vir que isto continua a piorar, também tenho de ir roubar como fazem aqueles que estão no poleiro, ou então fujo para Espanha, já lá está o Joel, você sabe quem é o Joel, o filho do Joaquim do talho, comprou lá uma casa, trabalha numa oficina, e ganha bem o gajo, até vai comprar um carro novo. Agora que os dias vão ficar maiores, quero ver se faço uns biscates para ganhar mais algum, para ajudar os meus filhos. Não basta quando são pequenos, e depois quando vão para a escola, agora é preciso ajuda-los sempre, parece que assim são sempre os nossos meninos.

Elvira -  É verdade, eu também me farto de ajudar os meus filhos, vou várias vezes lá a casa ajudar a arrumar, custa-me ver a casa como eles a deixam, e depois os meus netos, também tenho de os ajudar. Tenho lá ficado com eles nas férias e às vezes ao sábado, quando eles vão dar uma volta. E eles ainda moram longe e eu já não consigo conduzir como antes, eles vêm-me buscar, mas depois fica-lhes longe para irem trabalhar. Às vezes nem sei que lhes possa fazer mais.  E compro-lhes sempre coisas lá para casa. Eles também me ajudam, ainda este domingo o meu genro veio lá a casa arranjar umas coisas, ele tem jeito, mas também me custa vê-lo trabalhar no dia de descanso. A minha filha veio com ele para me ajudar a arrumar a casa mas ela não anda bem. Tem qualquer coisa esquisita, anda com maluqueıras na cabeça. Andava a passar o pano numa nossa senhora que eu tinha lá em casa faz 30 anos, eu disse-te que ma tinham trazido de Braga e deixou-a cair no chão assim sem mais nem menos, agora não tem remédio, ainda tentei ver se dava para colar mas... e depois andava a trocar o sítio de todas as coisas. Ainda lhe perguntei o que tinha mas não lhe consegui arrancar nem um sapo! Por falar nisso, há coisa de dois dias entrou-me um sapo pela janela das traseiras. O maldito!

António -  tenha cuidado menina Elvira, isso são cousas do canhoto! Ponha-se a pau!

Elvira - ponho um pau e no que diz, que me esta a rogar pragas!

António -  deus nos livre de lhe acontecer alguma coisa a si ou aos seus! Mas sabe que essas coisas acontecem, lembra-se do que disseram que aconteceu na casa do Alfredo, aquele homem nunca mais foi  mesmo! Mas eu lembro-me agora que tinham dito que se ele tivesse posto o funcho em casa que desapareceria, acho que é o que tem de fazer!

Elvira - pois eu ouvi isso, mas nesta altura do ano onde é que eu vou encontrar o funcho, não vou esperar que ele cresça! Mas espere, há aquela mulher que mora em Poços d’Arníca, talvez ela me dê qualquer coisa.

António -  Vá lá, vá lá, já sabe é sempre melhor prevenir que remediar. Mas quem é que lhe podia fazer uma coisa dessas? E afectar a sua filha? Ela nunca se deu mal com ninguém... Se fosse uma desvairada... mas eu nunca ouvi quem tivesse o que quer que fosse contra ela.