O fio-terra e o silêncio das sirenes.
E se (só) estivermos partidos por dentro e isso não se vir
por fora? Se isso não passar nem para os outros, e nem sequer para nós
próprios, será que é uma mera sugestão pontiaguda ou será tão forte que desfez
em cacos todas as ligações com o mundo real e se instalou para sempre no nosso
fundo? Sem esperança de lá sair ou de lá chegarmos... E se durar tanto tempo
que nos esquecemos e vivemos o tempo todo sem nela pensarmos mas com ela a
pincelar as nossas tardes e a desenhar os nossos sonhos, como uma força
esquecida que não pode ser culpada pelo que cria. Desconexo por não vestir uma
farda que nada me diz mas que em mim foi cosida. Um barco à deriva por ter
ignorado e esquecido o vento que nos tirou da rota e me conduziu para um mar
calmo; sem ondas, sem espuma, sem tempestades, sem medusas... sem merda
nenhuma. Depois canalizas tudo para o
que crias e partilhas com o mundo, e todos batem palmas e riem, sem se
aperceberem que estás mesmo assim por dentro. Se estamos tão partidos por
dentro que conseguimos luzidir tamanhos raios disformes cá para fora como é que
os outros não o conseguem ver? Pensam que os raios não são parte do nosso
interior, não reparam que isto vem de dentro de nós? ...Se serve de catarse? Se
assim conseguimos mergulhar abstractamente naquilo que não podemos quantificar
ou perceber? Se a distorção é o fio-terra que me conduz e doma os demónios? Sei
lá... mas só assim conseguimos escavar tão fundo e mergulhar autistamente
dentro de nós - sem medo - e regressar de mãos cheias, viscosas. Será que
quanto mais garimparmos mais sujidade vamos tirando de dentro de nós ou quanto
mais remexermos pior fica? Por hoje, deixem as sirenes descansar que já muito
berraram em vão. Elas, que nem sequer queriam ter som neste puzzle impossível de
porcelana estilhaçada.
666 Octanas
Toda esta pressão deixa-me num
inexplicável estado de transe. Nunca tinha sentido tanto medo e desespero na
minha vida e agora quase que parece que nada me afecta. Vou a descer a alta
velocidade por um caminho acidentado em terra batida cheio de buracos e pedras
e não consigo parar de acelerar, como se soubesse que nada me pode acontecer ou
então, já não me interessa. Sinto o cigarro nos lábios de uma forma tão
intensa, tão localizada… como se fossem um só, um organismo sedento da chama
que tenho na mão. Acendo o isqueiro, sinto o calor do tabaco a arder no meu
rosto, como se toda esta maldita floresta estivesse em chamas e eu, impune,
cavalgo nas suas entranhas. A cada passa que dou sinto o meu organismo a
renascer, a ser possuído pela minha nova alma em forma de fumo, de fogo. Não
pestanejo, já vou no terceiro cigarro consecutivo, mergulhado neste ruído
estrondoso de chapa e buracos. Dou por mim numa nova entidade, numa interacção
Homem-máquina indestrutível. Tenho os pés tatuados nos pedais e um íman no
acelerador. Sinto o meu coração a bombear gasolina para as articulações da
besta e o cano de escape a cuspir todo o fumo para os meus pulmões. Saio do
caminho, conduzo pelo meio das árvores, aqui não há asfalto, não há cores
pintadas no chão. Não sei para onde vou mas vivo-o em pleno, feroz. Sinto a
adrenalina a fervilhar, os ramos que batem violentamente no meu vidro, as
silvas que riscam, com garras infectadas, a chapa, as amolgadelas que tecem o
ADN desta viagem, tudo numa escala perfeita, dissonante, que só pode acabar
nesta nota, orgásMICA… UOUU… Bato com a
cabeça brutalmente no volante e sinto os meus órgãos a descolar e a voltar ao
sítio. Tudo se passou em super slow motion, a árvore a acenar e a correr
para nós, os pneus a arrancar a pele da floresta enquanto travávamos a fundo e
a salpicar as flores de sangue e carne negra da terra e depois… a sublime
colisão. Sem gravidade, cósmica, num BPM híbrido, sempre lento, ora em rotação
progressiva de valência positiva, ora a rebobinar. Voei graciosamente para o
volante, contra o tablier, num mergulho olímpico. Ainda tenho tempo para virar
a cabeça e sorrir para o júri, acenar para o público, sentir os flashes
e… Bang! Caio dolorosamente na realidade outra vez, de cabeça... Nem sinto a
cara, estou tonto, mas inteiro. Pelo buraco de um dente partido sugo outro
cigarro e dou-lhe chama, alma, sorrindo salpicado em sangue.
A
casota do Cardume
Carrego uma ânsia visceral de me
amalgamar na multidão e roubar-lhes o vazio que assola as suas frívolas
existências, feito abutre que se serve do cadáver podre. Vontade de abençoar
essa cobiçada privação de emoção com o azedo da água benta que salpica cada
átomo da minha agonizante realidade. Ser sardinha no cardume, cão de sarjeta,
sem ter que fugir em vão de tudo que me assola e consome… Abdicar de mim. Eu,
enquanto contorno, silhueta bipolar que demarca os limites das entranhas e
oráculos - que, em festim, se alimentam do que carrego - mas também receptor
magnético dos fantasmas que da minha assombração fazem vício, em matilhas. Um
banho de futilidade, de gestos triviais e pensamentos curtos… Esquecer tudo
isto tendo como terapia o lugar-comum, o espaço de todos… o refúgio de ninguém.
Isso sim, sabia bem.
Bola
de Espelhos
"...Era mais uma sexta à
noite e a pista de dança palpitava ao ritmo de corpos que deambulavam em busca
de impulsos estéreis mas intensos. Tu, distanciaste-te um pouco da tua amiga
como se uma força magnética abrisse caminho para mais uma investida minha na
tua direcção. Quando passava no vosso meio e me virei para ti, soltei uma frase
cordeal fazendo, tu, sinal que não tinhas ouvido. Há medida que a repetia e
mais me aproximava do teu ouvido a tua expressão de desinteresse torcidava o
meu pobre coração intoxicado. A cruz da minha volta de ouro gelava-me o peito
até que, de forma inesperada, te disse que ficavas bonita de vermelho. Tu
hesitaste - talvez não percebendo que estava a brincar por teres perdido o
jogo, de tarde, para a equipa vermelha - e depois de fazeres passar cruelmente
a impressão que esta conversa não teria um final feliz disseste que estavas
antipática, por te doerem os pés. Ao olhar para os teus sapatos conceitrei-me
nos meus e avancei errantemente face ao desconhecido, a um torbilhão de zombies
que se enroscam ao som de batidas de não pior gosto que o meu penteado... Tu
ficaste para trás, assim como a réstea das minhas esperanças. Não em relação a
nós mas sim depositadas na possibilidade de me poderes, secretamente, desejar e
toda essa deslumbrante máscara deixasse fugir uma pista. Não mais tentei
arranjar coragem ou motivo para te seduzir. Há pequenos momentos que não
precisam de ser relevantes para mudarem fatalmente o rumo das coisas.
Continuarás bem de vermelho... e eu a sabe-lo."
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