Coimbra A. À saída
da estação, do meu lado direito, o Mondego carregando a sua mixórdia brilhante em direcção sabe-se lá
onde. Do lado esquerdo, para onde me dirigo, o largo das Ameias e as ciganices
do costume à porta do café Angola. À entrada da rua Adelino Veiga, do outro
lado da inscrição “Porto”, temos o café Florida, propicio a receber senhores de
bigode que gostam de petiscar presunto enquanto debicam a suas cervejas mortas.
Cá fora, em frente à montra do café, onde estão expostos os Licores de Merda
(com um orgulhoso letreiro no meio das garrafas a dizer Made in Portugal), um
tipo de roupa apalhaçada segura uma bicicleta pasteleira (nota-se que foi
pintada à mão atabalhoadamente), o seu olhar é fugidio, olha à volta e compõe a
boina enterrando-a ainda mais na cabeça, dá uns passos para trás para a frente,
desviando-se das pessoas que passam apressadas à sua volta. Olha o céu, olha o
transito da tarde e quando o nosso olhar se cruza monta a bicicleta e arranca
devagar ao longo da rua que vou agora descrever, daqui, até ao topo da
montanha, a alta de Coimbra.
Em frente à vitrina da “Casa Sousa” uma montra
composta por xailes e naprôns com bordados very typical “encerrado por motivos
familiares”, diz um papel colado na porta de entrada. Logo ao lado a
ourivesaria e relojoaria “Aurus” depois “O Boquêt”, uma florista às escuras, a
seguir a “Boutique dos Perfumes” com a Shakira e o António Banderas na montra.
Em frente, do outro lado da rua o “El Dourado”, pronto-a-vestir com saldos de
30, 50 e 70 %. “Mustang Levis Dane Energie Gás Jack & Jones Lee. Roupa para
pessoa coiso e tal... É preferível falar dos manequins: Um deles nu, ou melhor
uma, sem braços, a olhar para quem entra na loja. A sua companheira do lado
esquerdo tem cabelo preto comprido, blusa branca rendilhada e calções de ganga
curtos, que não passam da brilha, pernão à mostra, como nos filmes americanos.
Do lado direito do manequim sem braços está mais uma com um vestido sem ombros,
de cor parda, ou bege, com umas pregas a escorrer até aos joelhos e olhar fixo.
Ao seu lado uma menina com cabelo curto, caindo em bico sobre os ombros,
emprega uma camisa justa com folhos nas mangas e uma saia com uma textura que
rosas que um homem com cabeleira preta a tapar as orelhas plásticas parece
querer apalpar. T-shirt branca com uma
caveira de boca aberta com uma espada que entra num olho e sai no ouvido lado oposto.
Calças de ganga preta, russas, que lhe caiem sobre os pés descalços de unhas
naturalmente plásticas. Mesmo ao lado do “Modas Veiga” fechado com grades
corridas, um letreiro a vermelho diz que se compra ouro pratas e joias. Em
frente, uma casa de tapetes, carpetes e afins chamada “Zé Dibel”. Turistas
Italianos deambulam à minha volta olhando para a minha ridícula figura de bloco
de notas na mão. Podia-vos descrever o padrão dos tapetes e carpetes mas... se
vamos a isso... nunca mais daqui (ou dali) saiamos (ou saí-a)... Já agora,
nunca pensaram em fazer uma lista de todos os objectos que têm em casa?
Continuemos pela rua Adelino Veiga: alguns imigrantes falando francês para o
boneco. Em frente à residência “Domus” de três estrelas, verdes, uma pastelaria
encerrada para férias. A montra está recheada com pianos plásticos, corta-unhas
com a bandeira portuguesa, patos de barro, um serviço de chá miniatura, postais
com palhaços amarelados, conjunto de bonecos do presépio com duas ovelhas
suplementares e mais três bonecos campinos - o do meio com barrete vermelho
caído par o lado, os outros dois com chapéu de abas preto. Um homem carrancudo
de camisa branca, calças pretas (de vinco), sapato castanho com uns
penduricalhos e óculos de escriturário, passa em frente à “Fashion Store –
Amour” e olha demoradamente lá para dentro quase chocando com um velhote de
bengala carregado de com um saco de cebolas. Logo ao lado a loja “O Chinês” com
roupa feminina para todo o tipo de mulheres. Segue-se o pronto a vestir “Brittania
com uma montra repleta de vestidos frecos com cores exóticas mesmo antes de um
beco sem nome que desemboca num exaustor gigante camuflado com sacos pretos.
Um homem
sexagenário com um polo verde, calças brancas e cabelo à escovinha entra nas
arcadas da “Foto Coimbra”, quer parecer mais novo nas fotografias com certeza,
ou talvez seja a sua nova imagem depois do divorcio. De lá de dentro sai uma
mulher gorda, também com ar de
sexagenária, camisa vermelho mais-ou-menos transparente, saia pelos
joelhos e sandálias deformadas pelos pés batatudos. Fotografias de noivos e
noivas deitados na relva de um parque e numa escadaria que vai dar ao mar, tudo
poses estudadas e bem pagas. Ao lado da
loja de fotografia, uma loja com malas e artigos de viagem e por cima a
“Residência Moderna” com a bandeira do partido comunista numa janela e uma
placa com uma mulher de cabelo azul com franja ruiva, na outra, anunciando que ali funciona um cabeleireiro.
De novo no andar de baixo, uma loja de
decoração com dois santos Antónios, um com o menino ao colo o outro sem o
menino ao colo. Pode-se ver também a rainha santa Isabel e a torre da Cabra em
tons Rosa. Andamos mais uns passos e estamos já num novo império do plástico:
uma loja de brinquedos com - triciclos
em forma de mota; chorões do tamanho das motas; uma mesa de matraquilhos miniatura; uma guitarra de papel; o
monopólio; bonecos da playmobil montando dinossauros; puzzles do Peter Pan e do
Tarzan; bonecos Transformers que tanto são prédio como pessoas, não sei quantas
barbies com não sei quantos cabelos diferentes e do outro lado da rua mais uma
placa a dizer “vende-se ouro – compra-se prata” e uma mulher
especada com a mão tapando a boca aberta. E mais
uma loja de malas e guarda-chuvas com o empregado à porta a fumar e a olhar
para mim e eu a olhar para a montra da “Loja Xana” com os vidros tapados com
papel castanho pardo, aquele papel que tanto dá para fazer contas à vida como
para embrulhar postas de bacalhau salgado. E um rapaz também de pele castanha
parda estende a mão aos transeuntes... No largo do Poço do Conde, do
restaurante com o mesmo nome sai um aroma a frango de churrasco que se arrasta
até à “Modas Bagui” (camisas gravatas e
blusas) e à loja de roupa para criança
“Bebé confort”: e de lá de dentro sai uma velhota com cabelo branco e blusa
azul marinho arrastando cá para fora o neto que dá saltos e teima para lhe
comprarem o carro gigante que se encontrava a servir de base para um manequim
infaltil. Do outro lado da rua, “Saul Morgado Fecundo” tem as três grandes
vitrinas fechadas com grades – e passa um homem de meia idade a coçar os
tomates logo seguido de uma mulher de vestido amarelo e saltos altos que
caminha levantando demasiado os joelhos. Segue-se uma realojaria que também vende
canetas finas e mais uma loja de
brinquedos com um Pinóquio gigante à porta mesmo antes de virar à direita para
o Beco das Canivetas que vai dar à cozinha económica. Mas não é para ai que
vamos agora, nem para a insólita travessa Adelino Veiga (com o portão fechado à
entrada), seguimos em frente para a antiga praça do comercio - malas tigresas;
sapatos de xadrez ; camisas de futebolista – aparece o pequeno carro escovador de ruas – e já estamos na praça
velha onde está a haver uma feira de aboboras e cabaças... sentados num banco
junto à cabine telefónica os três da vigairada: Quicas – que alguns apelidem de
avozinho punk; Toni – o alentejano que faz artesanato com sementes de boi – e
Valery, o ucraniano amigo do copo e dos Mr Bungle... e mais uma serie de
pessoas com um telemóvel ao ouvido e outro na mão... e em frente às barracas de
artesanato está estacionada uma Kavasaky Ninja. À entrada das escadas de São
Tiago reparo no tipo que pinta retratos a carvão a dar uns retoques na face da
Marisa (fadista). Subo as escadas: BIBLIA ESCRITA POR E.T.S E ESPIRITOS MUITO
MAUS. Estamos na rua passerelle de Coimbra, a Ferreira Borges, as pessoas
passam não muito apressadas, atormentadas pelo sol da tarde. Contrariando a
letargia do momento alguém mete a correr pela rua do Crucifixo (que vai dar à
capela dos fados, onde também faziam festas de trance) acima fugindo não faço
ideia a quê. A “Mango” e os outros pronto-a-vestir chiquerrimos cá da rua estão
às moscas. Apenas a farmácia e os cafés parecem ter clientes: e para lá das
esplanadas ouve-se o som de acordeão, ou melhor concertina: mesmo em frente ao
banco Millenium uma rapariga de saias compridas e cabelo curto abre e fecha o
fole lentamente
com a boca meia aberta num misto de sorriso e de espanto – e ao seu lado um
tipo mais velho toca violino com uma expressão sofrida - mas encontram-se
musicalmente, algo entre a valsa com tempos trocados e o minuete quatro por nove. Pisco o olho e meto à
esquerda subindo pela rua do arco da Almedina. Uma figura em jeito vê de Vendetta
pintado na parede diz “já apagaram o futuro a mais de seiscentos”. E por baixo
do arco da Almedina o alfarrabista moreno e sorridente onde já troquei alguns
livros aos quadradinhos, isto já lá vão uns anos... Como é habitual, ouve-se
fado com guitarradas brutas... e já na escapa antes da estátua da leiteira uma
loja de discos com rock psicadélico obscuro na montra, por exemplo a banda
italiana Goblin que fez a banda sonora do filme Suspiria... Mais turistas às
aranhas, acelero o passo escada acima, toco o carrilhão de sinos à entrada de
uma loja de artesanato com figuras de barro pintadas à mão e serapilheira... Em
frente ao bar “Quebra” um puto pendurado no varão das escadas de cabeça para
baixo. Do lado direito, mesmo antes da tasca das Ginginhas, uns editais falam
de excursão a Fátima ou a Santiago de Compostela. Na parede ao lado uma figura
com o punho serrado ao lado de um sorriso com a inscrição “open your mind”. Já
quase ao cimo das escadas do quebra costas passamos pelos sanitários públicos
onde um homem de óculos fundo de garrafa dorme ao som de uma radio a pilhas mal
sintonizado. Uma loja de azulejos com motivos vegetais e faisões verdes e
amarelos. Já cá em cima, no café sé velha” “há caracóis e chouriço assado e
choupo do rio e vinho verde”. Ainda no largo da Sé Velha o “cabido bar” e o “oásis
bar” e turistas agarrados a mapas a olhar intervaladamente para a sé e para o
mapa que têm na mão. Meto logo pela rua do Cabido, onde fica o “boêmia bar” e o
Ateneu. Janelas redondas chamam-me à atenção ao virar para a travessa do
cabido, nunca tinha reparado nelas...”A noite eh uma vaca preta” diz na
esquina. Mais à frente uma agradável nespereira subindo acima dos muros altos e
na fachada “mulheres unidas contra o autoritarismo patriarcal capitalista”,
sobe-se mais um pouco e “nem deus nem
amo”, sobe-se ainda mais um pouco e “globalizemos a rebelião”. E já estamos no
vão de escadas com um pica-pau colorido por baixo da república Bota-Abaixo com
um triciclo e uma varinha magica pendurados nas grades de uma janela. Entramos
na rua de são Salvador onde alguém se mete a falar crioulo comigo, respondo em
russo. Depois na travessa do loureiro
oiço uma voz de televisão a falar dos países da zona euro e mais a cima à entrada
da travessa da matemática vindo de uma qualquer janela do rés do chão de um
daqueles prédios degradados oiço “Entropia Rádio – oitenta e oito ponto três éf
ém – uma rádio com grooove”. Um gatafunho na parede em frente diz “coca-cola
matou sindicalistas” e entra-se na rua da matemática com as sua característica
calçada de pedras negras ovais servindo de passagem para todo o tipo de pessoas
e animais que se dirijam à República dos Incas e Rás-te-Parta do lado esquerdo
e a República do quarenta e Solar quarenta e quatro do lado direito. E é por
aqui que seguimos rodeados de inscrições como “Boicota o estado” ; “Nem guerra
entre o povo nem paz entre as classes” , “Fuck you not me” ; “Liberdade para a
múmia Abu Jamal” ; “Morte à Praxe” ; “Se deus existisse teríamos de o matar” ;
“Ó passos volta para a aldeia da coelha” ; “Sorri e Luta” ;
“NATO:Neoliberais-Autoritários-Tecnocratas-Opressores” ; “M=G8=(caveira)” ;
“Jorge Sampaio = Américo Tomás” ; “A solução para Portugal não é política é
cívica” ; “Praxismo rima com fascismo”.
E finalmente ao fim da rua a República dos Corsários. Abro o portão de
ferro ferrugento e entro no átrio. Uma cadeira de plástico espetada num ferro
junto ao portão. Passo por baixo da ameixoeira que dá abrunhos e procuro o
Aníbal que afinal ainda não chegou. Aliás o único morador presente na casa
parece ser a cadela Ary. Já velhota mas ainda barulhenta. Sento-me no banco de
madeira cá fora e enrolo um cigarro enquanto olho em redor atralha espalhada
pelo jardim-pátio. Um sinal de stop por baixo do limoeiro. Grades de cerveja a
servir de vasos para flores que afinal não passam de ervas. Mais vasos com
cactos e cascas de laranja. Uma bola de basket suja de merda de cão, mais
pedaços de ferro ferrugento e panelas gigantes sujas de terra. Por baixo da
ameixoeira uma mesa de madeira com folhas secas e copos de plástico ainda com
resteas de vinho. Alguns tijolos partidos e pedaços de cartão amontoados por
baixo da mesa. Junto ao tronco da árvore tropical género palmeira um assador
para churrascos e uma antena parabólica com um escadote a servir de acesso. Na
fachada da casa propriamente dita, por trás de mim, um tabuleta diz “por um
outro Abril” e ao lado uma serie de objectos de cozinha enferrujados;
microfone; teclados de computador; pincéis; um leitor de cassetes; uma lanterna;
ventoinhas e outros aparelhometros escavacados, tudo pendurado na varanda por
cima da minha cabeça. Vindo do exterior aparece o Adão, faz um aceno rápido e
entra numa porta ao lado da inscrição “Os Galifões são bufos”. Por cima dessa
inscrição uns azulejos azuis com uma santa qualquer e uns anjinhos
tresmalhados. E quando já estava pronto para abalar dali, uma vez que já estava
farto de descrições, aparece inesperadamente o JêPê mesmo a tempo de me ajudar
a beber a garrafa de tinto que estava ali a beber sozinho. Aproximo-me e
cumprimentamo-nos efusivamente. Com a troca de energias liberta-se algum pó, a
justificação é rápida, o homem acaba de chegar de mais uma festa de trance,
desta vez na praia do Palheirão, perto da Tocha. E não perde tempo, dirige-se rapidamente
ao tanque no canto do pátio, onde está a placa que diz “exposição de bruxaria”
mergulha a cabeça na água e ensaboa-se enquanto lhe falo das vicissitudes do
vinho caseiro que tenho na mão.
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