O
mecanismo é um registo
O desmaio cobriu de branco as forças maquiavélicas que apertavam, com a
força de gigantes, o meu corpo que sucumbia a uma espessa camada de cansaço
enquanto desistia de lutar contra o narcótico que adormecia a minha débil
musculatura. Caindo desamparado e inconsciente, como que por efeito de um
pesado soporífero, a minha rendição foi incondicional, extremamente física, mas
na minha consciência os sonhos a jusante foram libertadores, sonhos aflitivos,
intermináveis pesadelos, entidades maléficas, das que lançam desafios de vida
ou morte, ameaçavam aterrar nas minhas oníricas fortalezas, esses refúgios
elaborados que surgem em sonhos frequentes e onde se desenrolam as charadas
mais coloridas. Durante um desses sonhos aterradores, um ser do exterior quase
conseguiu entrar na minha casa por uma janela, inadvertidamente aberta, mas
avancei veloz e lancei-lhe um pó verde directamente à cara e não sei de onde veio esta poeira esverdeada se de algum bolso mágico ou uma
manga arregaçada mas foi por instinto e muito eficaz porque mal consegui ver a
sua expressão de desagrado quando ele desapareceu numa implosão de verdes
ressonantes. Num outro sonho, em que eu pressentia o ambiente de fuga
desenfreada ou perigo iminente porque eu estava do lado de fora da casa e dei
pela urgência que tinha em entrar lá para dentro e o mais rápido possível seria
por uma janela aberta por onde avancei, com a ansiedade de uma criança que se
perdeu e que regressa a casa de seus pais, galgando secretamente uma alta
janela: um primeiro pé que procura a base sustentável para se apoiar e nem o
outro porque surgiu um indivíduo, a quem apenas reconheço a presença e que
dentro da minha própria casa, sem me dar tempo para nada, avança para mim e
lança-me um pó verde na cara, nesse instante surpreendente acordei em
sobressalto, assim meio estranho e revoltado com a sensação desagradável de ter
sido expulso de um sonho por uma trapaça esverdeada de outrem que sem se
apresentar me pareceu excessivamente familiar e pensei: sou eu mesmo, o
acordado? Estava tudo escuro à minha volta. Estaria eu ainda inconsciente ou
quase morto? O negro que via era um negro de morte mas uma vozinha interior, bem
minha conhecida, sussurrava os auspícios da verdade (em murmúrio): Um sonho é
um sonho, havemos de te acordar… e com um pouco mais de esforço, domesticando o
supra-consciente, acordei mesmo… esfrego-me no chão, frio e húmido, de uma cela
bolorenta inundada de texturas atrozes porque ásperas dessa mesma matéria que
me surrava o esqueleto, há tempos por saber. Já não sonhava, o meu próprio peso
me garantia que o chão, que se entranhava na carne, era real e que o gélido
ressoado, de cheiro tipicamente enfezado de onde provém esse sustento que é a
realidade escrutinada pelos que sobrevivem no agora em que não me enterro neste
chão mas em que também não estou a levitar sobre ele, este instante em que
simplesmente estou aqui em repouso absoluto mas reactivo porque de um só golpe
me levantei e percorri as quatro paredes, com as mãos a formar o quadrado deste
lugar de claustrofobia pura, subi ao tecto e regressei ao chão para encontrar
finalmente o que me revelou o caminho para fugir desta masmorra: Um raio de luz
e o mecanismo que estava onde sempre esteve, no bolso das minhas calças
esfarrapadas, tinha-me esquecido dele mas ao tocar-lhe recordei a minha
jornada, este mecanismo é uma maqueta que representa, numa escala reduzida, o
que vi no interior da pirâmide que surgiu durante o terramoto, no lago
Titicaca. Aproximei o mecanismo de um feixe ténue de luz que penetrava na
prisão e quando interceptei luz reflexiva, numa certa inclinação, o mecanismo
começou a emitir uma pálida mas cada vez mais intensa luminosidade reflectida
que transbordou em todos os poros do cárcere microscópico mas só quando comecei
a sentir um certo calor reconfortante é que o guardião dos prisioneiros de
destino incerto abriu o alçapão por onde me escapuli no seio de uma ofuscante
luminosidade, agora cada vez mais intensa e que cegava o meu estorvo.
Simultaneamente antevi a sua expressão de surpresa e a minha saída,
estruturando mentalmente, em luminares fracções de tempo, a minha trajectória
para fugir daquele destino de condenado e com uma agilidade desconcertante para
os restantes guardas atónitos e paralisados por vagas de arrepios que pressenti
como electricidade estática circundante quando passei por eles com a velocidade
de um esgar esgazeado. Nessa mesma noite, depois de me afastar o suficiente
pela floresta arborizada com uma labiríntica liberdade, como que para não ser
nunca mais encontrado, cruzei-me com um pujante jaguar que me cedeu a passagem
quando nos cruzamos na nossa nocturna e selvática deambulação, nesse momento
eu, o jaguar e a selva harmonizamos ao luar pelo que, em sinal de reverência ou
respeito secular, não olhei para trás enquanto me afastava e apenas avancei com
audácia perante a sua aparente intenção em me deixar passar, o nosso encontro
fugaz foi neutro mas revelador e à medida que me embrenhava na imensidão
obscura os meus sentidos apuravam-se e movia-me com rapidez e precisão numa
correria saltitante e aparentemente incerta. Ao amanhecer, numa alvorada
esvoaçante, com o olhar binocular de não dormir ou uma lente potente que se
forma temporariamente na córnea pela necessidade vital, nesta circunstância,
desse mesmo efeito, vejo nitidamente e ao pormenor as formigas, os insectos,
grãos de terra negra, castanha e vermelha, consigo focar ao mínimo detalhe a
textura verde da folhagem e ao falar em voz alta ouço a minha voz como uma
onomatopeia aleatória que se funde na cacofonia matinal da floresta onde me
enquadro não sem afinidades viscerais e reparo então que os meus dedos estão
cheios de golpes e secamente ensanguentados, mais tarde vim a saber que tinha
escrito, com o meu próprio sangue, uma infinidade de equações matemáticas nas
paredes do meu cárcere, uma série de formulações às quais ninguém deu
importância excepto pelo facto de manifestar um comportamento obsessivo e
maníaco que esteve na origem da minha captura. Sem dúvida uma espécie de
sonambulismo de que não me recordo me levou a fazer isso mas agora só sentia o
frémito de uma missão supra-científica e extra-histórica: esta peça de
arqueologia, o mecanismo que quando manuseado intuitivamente na presença de um
ténue raio de luz activa um processo quântico desconhecido. Procurei um sítio
obscuro onde pudesse testar esse efeito e encontrei um refúgio cavernoso onde
confortavelmente comecei a percorrer feixes de luz ténue com ele, bruscamente
encontro um certo ângulo e uma certa luz que reflectindo na peça provocam uma
inundação de luz que lentamente se transforma num foco de diversos hologramas
até preencher toda a atmosfera por uma paisagem circundante que me transportou
para uma visão de uma outra dimensão ou uma realidade que eu desconhecia, o
mecanismo é um registo.
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