O
Gordo
E ele acorda… de novo nos mesmos lençóis, da mesma cama, do
mesmo quarto, do mesmo apartamento emprestado ao cheiro a mijo e ovos.
Levanta-se, arrastando-se pela roupa do leito completamente
ensopada em suor. São 16h30m.
E lá vai ele, até à cozinha, põe a aquecer a refeição
congelada que comprou no mercado da Filipa, e espera, Pega na garrafa de ginja e
roda assim mais um dia… quão agradável é o anti-reboliço de se ser quem é: um
gordo peido ignorante com o 11º ano feito em artes, curso que honra sempre que
se lembra, gabando a genialidade de Kandinsky ao vizinho do rés do chão.
Decide ir acompanhar a televisão quase inaudível,
sentando-se no sofá e lentamente, o seu cachaço húmido escorrega para uma
posição quase tão onírica quanto o próprio sonho e adormece.
Quanto mais se deixa ir naquele rio de preguiça, mais denso
se torna o vulto. Ouvem-se ainda os barulhos do que se passa lá fora. Surge a
vontade de ir fechar a janela e as portadas para não ouvir os putos a brincar
na rua, mas esse ímpeto é imediatamente abafado pela consciência de que para
isso teria de se levantar e então… cai.
O sonho não para de se adensar. Quão mais embebido nessa
fantasia está, mais lúcido da sua consciência ele fica, e neste antagonismo de
espíritos, o seu subconsciente dança para ele. Mostra-lhe os seus medos, os
seus fortes (ou a falta deles), as humilhações e as situações pelas quais
esperançava. Viu de relance o primeiro beijo que nunca teve e voltou a
contemplar o fundo da sanita que provou no 4º ano. Doces incansáveis memórias,
O gordo conseguiu sentir as lágrimas a escorrer-lhe as faces
e a desenhar-lhe os contornos das bochechas. Eram as mesmas lágrimas de um
primeiro dia na primária. Sabiam ao mesmo sal.
Normalmente seria este o momento para masturbações literais
e figurativas por parte do nosso pesado herói, mas essa vontade “oh” tão
prioritária era agora apenas um gesto de atenção daquilo que ele tentava
recusar ser.
Este sonho convertido em pesadelo, ou simplesmente
disfarçado, surgia-lhe tanto como uma humilhação perante si mesmo, como uma
espécie de dádiva.
Seria este um ponto de viragem ou de ebulição? O primeiro
era apoiado pelo seu Wolffismo e o
segundo pela sua insegurança quanto a qualquer optimismo dirigido à sua pessoa
quando a sua vida nunca lhe deu motivos para tal.
“A verdade é que nada é nada. Caímos todos no mesmo erro de
tentar atribuir um significado maior aos acontecimentos que, na maior parte das
vezes, não vão realmente para além disso mesmo… Acontecimentos.” E lá divagava
o Gordo, na esperança que fosse este o fim do que lá era toda esta parafernália
de anormalidades.
Fosse esta a última vez que o Gordo enfrentaria algo de que
não gosta hoje… antes o fosse.
O remoinho onírico não parava de o agitar… de agitar quem
ele é, quem ele pensa que é e o seu corpo. E as repercussões eram reais. Ele
sentia as pernas suadas a colar e a descolar do cabedal do sofá de cabedal,
avermelhando as coxas, assemelhando-o (ainda mais) a um frango por cozer. Quão
fraco se pode ser para tal semelhança acontecer?
E nisto, nem a propósito desta última comparação
despropositada, o microondas, toca. O Gordo tinha-se esquecido que tinha
deixado a refeição a aquecer. Acorda agitado por dentro, imóvel por fora, e
corre (lá à sua maneira), tropeçando num canto do tapete, até ao microondas que
parecia já ter feito o que tinha de fazer há bastante mais tempo do que se
pensava.
Enquanto punha a refeição numa travessa de quatro para o
almoço de um, reflecte naquilo que lhe foi dado no sonho. Que lá, tão malvado
lhe parecia. Lembrava-se do quão inusitado era o vulto que o cobria e quão o
irritava a imprevisibilidade daquela visão. Sobrou do gordo um banco partido e
caído, perto de uma gosma que põe o sujo em branco-sujo no jogo de azulejos
branco e uma gravata pendurada a uma daquelas ventoinhas que se põem nos
tectos. E ele acorda.
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