Redondez O arquitecto chinês era conhecido pela sua
ousadia de formas e requisitado internacionalmente para os projectos mais
vanguardistas. Era visto pelos seus pares como um grande homem, um artista de
proféticas propriedades que traçava as casas mais criativas e os prédios mais
vistosos. Mas na discrição da sua mente, o arquitecto enojava-se pela natureza
do seu próprio trabalho: ele queria ser um pássaro, um errante pensador, um
viajante incansável, mas dedicava a sua existência à edificação de imóveis. E
“imóvel” era de todas, a sua palavra menos preferida.
Um dia o arquitecto
deitou-se na cama e adormeceu após longos minutos. Veio-lhe no sono a
inspiração que esteve na base do seu mais notável feito: uma casa viajante.
Escreveu-a com uma ciência impossível e apresentou-a aos seus contemporâneos,
que julgaram ver no arquitecto, figura indiscutível da seriedade, uma ligeira
embriaguez de espírito. Mas o sonho tem muita firmeza nas vontades do homem, e
a casa viajante esteve pronta em menos de um ano. Era mistura das feitiçarias
mais absurdas e das ciências menos concretas e passou a ser o lar do arquitecto
chinês.
Assim, todas as
noites, este deitava-se no conforto da sua cama e viajava, não só pelos
psicadélicos caminhos da sua mente mas também pelas estradas reais da
existência, que essa estranha espécie de casa ia calcando. E acordou o
arquitecto na primeira noite com o seu pijama de verão apenas para descobrir, lá
fora, um cenário com pouco de estival. Durante um ano, o chinês descobriu meio
mundo e acordou todos os dias para encontrar um país, um povo e uma paisagem
diferentes. Despertava inundado de curiosidade, e assistiu, da pequena
janelinha do seu quarto, aos monumentos italianos, aos fiordes escandinavos,
aos desertos africanos, às praias portuguesas até, porque não. Como uma droga,
este inédito formato de vida, que tanto prazer dava ao arquitecto, gerou uma
dependência. Tornou-se este sujeito o mais viajado de todos os viajantes, e
ironicamente o que menos se mexia. Passou a viver das conservas da dispensa e
partilhou as suas magníficas experiências com mais ninguém senão o seu gato.
Era uma vida bela, que se renovava a cada noite de sono, em que cada dia deixava
descobrir uma multiplicidade de novas coisas, era um perpétuo excitamento, uma
eterna cavalgada rumo ao desconhecido.
Surpreende-me,
casa!, dizia o arquitecto chinês do cimo dos Alpes suiços, e a casa logo o
fazia acordar numa praia das Caraíbas. Como a vida é boa, pensava então ele,
guardando a sua felicidade apenas para si, reservando as suas experiências
apenas à sua memória.
E um
dia, depois de acordar de um sono profundo e de sonhar com o cosmos, o
arquitecto contemplou com surpresa, sempre através da sua janela, a
inconfundível face da China de onde tinha partido. E compreendeu nesse momento
que não fora a sua casa a rodar à volta do mundo, mas o mundo à rodar à volta
da sua casa.
REI EM
Há duzentos anos atrás o REI EM lançou uma lei que obrigava
todo o escrivão, diplomata etcetra a escrever o seu nome em letras capitais,
maiúsculas bem visíveis e orgulhosas, que destoassem das restantes letrinhas
humildes do mesmo jeito que o REI EM destoava das gentes e das coisas sobre as
quais reinava. REI EM morreu agora há uns bons anos atrás, como podem concluir
os leitores mais conhecedores da brevidade humana; mas esta lei permaneceu e
obriga-me, portanto, a aniquilar todas as hipóteses deste texto se notabilizar
por um estilo limpo, ausente dessas porcarias que compõe a literatura moderna.
erna.
ern.
er.
e.
Foi por o REI EM se
revelar um personagem tão aborrecido (e por vários outros escritores – esses
escritores a sério – manifestarem a mesma opinião) que decidi precisamente
escrever sobre ele. Destina-se este pequeno espécie de conto aos leitores que,
necessitados de sono mas igualmente carentes de barbitúricos, gostariam de
adormecer.
Nasceu menino esse
REI EM, pelo menos enquanto era bebé mamava inocentemente a teta de sua mãe.
Não bastou muito até que as tetas alvas da mamagem fossem as do povo, que de
mamas era liso que nem uma tábua, mas que mesmo assim era roubado até o mamilo
se colar ao osso. Essa célebre lei, que acaba por motivar esta palavragem toda,
fê-la lei o REI EM num dia de Verão quente; segundo relatos adquiridos, que é
como quem diz, especulações inventadas por mim, o REI EM fê-lo em resposta à
arrogância de Deus em deixar explícito que se escreva o Seu nome e qualquer
referência pronominal com uma letra maiúscula no começo. A questão é que dizer
Deus assim desta maneira não é nada que me preocupe, mas REI EM já é coisa que
fica feia, e não posso fazer como com Deus e escrever deus, porque no caso do
rei existem complicações legais a enfrentar. Mas o REI EM deixou bem assente
nos registos históricos outras suas qualidades, como a do narcisismo. Numa medida
que empregou cerca de cento e cinquenta homens fortes, ordenou a carregação de
espelhos em seu redor, a todas as horas e momentos, para que pudesse sempre
olhar a perfeição do seu rosto e o seu elogiado corpo ou faustosas roupas, um
de cada vez porque só há histórias de reis nus e vestidos, a semi-nudez é coisa
que não importa à nobreza. Isto, a ser verdade, só consegue atiçar a minha
imaginação a considerar os momentos mais desconfortáveis como a cagadela real
ou o xixizinho real, ou mesmo o sexo com a rainha, que coitada, tinha o rabo
exposto em demasiados reflexos. Outra vez ainda forçou o REI EM todas as
donzelas do reino a manifestar sentimentos de paixão aquando a sua passagem;
isto claro, precedeu a lei dos espelhos, que não permitiam ao rei olhar para as
montanhas, quanto mais para as donzelas.
Eventualmente, os
habitantes do país do REI EM habituaram-se à série de leis absurdas do jovem
monarca, que se rebeliava contra os seus conselheiros e contra uma corte que,
depois da lei das vestimentas de urso (que obrigava todos os nobres, excepto o
rei, a vestirem-se de ursinho de peluche) deixou de parecer tão séria. Há quem
diga que a atitude rebelde do REI EM influenciou o movimento punk da década de
70 e o manifesto anarquista, mas quem o diz é certamente parvo, porque tudo
isto não passa de um delírio imaginativo assinado por mim. Prossigamos com ele,
então.
Mas o REI EM
envelheceu. E os seus interesses mudaram. O rei deixava de ser o jovem
inconsequente que todos conheciam e transformava-se, aos poucos, num sujeito
culto e digno de elogio. Gostou de arte e pintou portanto retratos, horríveis
desenhos de monstruosas criaturas (que eram antes de serem tela, belas
mulheres) que eram elevadas pela crítica, completamente imparcial, a estatuto
de obra-prima. Gostou depois de música e compôs as mais horríveis composições,
que nem as melhores orquestras sabiam enobrecer, mas que o público,
absolutamente iluminado, não fartava de aplaudir. Gostou de literatura e
escreveu os mais básicos contos de crianças, que os intelectuais gostavam de
considerar clássicos instantâneos, arranjando significados simbólicos inclusive
para os erros ortográficos. Eventualmente, o REI EM seria conhecido não só como
um ditador narcisista, mas também como um artista de grande sensibilidade.
Foi neste clima de
falsa apreciação que o REI EM, agora um sujeito sábio dedicado à cultura e a
medicinas orientais, faleceu. Consta-se que estava a pintar um quadro quando
sofreu um derrame dos miolos via olhos, motivado por uma vida de contínua
espelhagem. O quadro, tão inacabado quanto tão pouco começado, está entre os
mais conceituados da sua obra.
Mas a questão
continua a inclinar-se sobre mim: de que me valeu este esforço dos dedos. Pois
vejam, REI EM continua a ser uma dessas palavras chatas, qual sigla
internacional, que sou forçado a escrever ASSIM. Já escrevi cartas aos
familiares directos do rei, que não me ligaram nenhuma porque estão ambos
presos por consumo de cocaína. Já tentei todas as organizações internacionais
de que me lembro, mas todas se encontram demasiado ocupadas com assuntos mais
sérios. Já tentei inclusive a Santa Fé, mas eles não me desculparam aquela
piada com Deus e até começaram a acender a lareira quando me viram. Restam-me
que opções. Eu digo-vos: ser uma fora-da-lei do texto escrito, que tal como os
ladrões que roubam para matar a fome, se insurge contra a lei por motivos de
desespero. Talvez uma revolução se inicie de ora em diante, e em todas as
seguintes edições de tomos históricos e volumes enciclopédicos, as referências
ao REI EM se façam de uma forma menos grosseira para o estilo. De qualquer
forma, o anúncio foi feito e a palavra cá vai; desculpem-me os mais ofendíveis,
chegou a hora da revolução: “rei em” (intitulado assim, com minúsculas)
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