segunda-feira, 21 de maio de 2012

André Fernandes (666 octanas)


O fio-terra e o silêncio das sirenes.
E se (só) estivermos partidos por dentro e isso não se vir por fora? Se isso não passar nem para os outros, e nem sequer para nós próprios, será que é uma mera sugestão pontiaguda ou será tão forte que desfez em cacos todas as ligações com o mundo real e se instalou para sempre no nosso fundo? Sem esperança de lá sair ou de lá chegarmos... E se durar tanto tempo que nos esquecemos e vivemos o tempo todo sem nela pensarmos mas com ela a pincelar as nossas tardes e a desenhar os nossos sonhos, como uma força esquecida que não pode ser culpada pelo que cria. Desconexo por não vestir uma farda que nada me diz mas que em mim foi cosida. Um barco à deriva por ter ignorado e esquecido o vento que nos tirou da rota e me conduziu para um mar calmo; sem ondas, sem espuma, sem tempestades, sem medusas... sem merda nenhuma.  Depois canalizas tudo para o que crias e partilhas com o mundo, e todos batem palmas e riem, sem se aperceberem que estás mesmo assim por dentro. Se estamos tão partidos por dentro que conseguimos luzidir tamanhos raios disformes cá para fora como é que os outros não o conseguem ver? Pensam que os raios não são parte do nosso interior, não reparam que isto vem de dentro de nós? ...Se serve de catarse? Se assim conseguimos mergulhar abstractamente naquilo que não podemos quantificar ou perceber? Se a distorção é o fio-terra que me conduz e doma os demónios? Sei lá... mas só assim conseguimos escavar tão fundo e mergulhar autistamente dentro de nós - sem medo - e regressar de mãos cheias, viscosas. Será que quanto mais garimparmos mais sujidade vamos tirando de dentro de nós ou quanto mais remexermos pior fica? Por hoje, deixem as sirenes descansar que já muito berraram em vão. Elas, que nem sequer queriam ter som neste puzzle impossível de porcelana estilhaçada.
                                   
666 Octanas
Toda esta pressão deixa-me num inexplicável estado de transe. Nunca tinha sentido tanto medo e desespero na minha vida e agora quase que parece que nada me afecta. Vou a descer a alta velocidade por um caminho acidentado em terra batida cheio de buracos e pedras e não consigo parar de acelerar, como se soubesse que nada me pode acontecer ou então, já não me interessa. Sinto o cigarro nos lábios de uma forma tão intensa, tão localizada… como se fossem um só, um organismo sedento da chama que tenho na mão. Acendo o isqueiro, sinto o calor do tabaco a arder no meu rosto, como se toda esta maldita floresta estivesse em chamas e eu, impune, cavalgo nas suas entranhas. A cada passa que dou sinto o meu organismo a renascer, a ser possuído pela minha nova alma em forma de fumo, de fogo. Não pestanejo, já vou no terceiro cigarro consecutivo, mergulhado neste ruído estrondoso de chapa e buracos. Dou por mim numa nova entidade, numa interacção Homem-máquina indestrutível. Tenho os pés tatuados nos pedais e um íman no acelerador. Sinto o meu coração a bombear gasolina para as articulações da besta e o cano de escape a cuspir todo o fumo para os meus pulmões. Saio do caminho, conduzo pelo meio das árvores, aqui não há asfalto, não há cores pintadas no chão. Não sei para onde vou mas vivo-o em pleno, feroz. Sinto a adrenalina a fervilhar, os ramos que batem violentamente no meu vidro, as silvas que riscam, com garras infectadas, a chapa, as amolgadelas que tecem o ADN desta viagem, tudo numa escala perfeita, dissonante, que só pode acabar nesta nota, orgásMICA… UOUU…  Bato com a cabeça brutalmente no volante e sinto os meus órgãos a descolar e a voltar ao sítio. Tudo se passou em super slow motion, a árvore a acenar e a correr para nós, os pneus a arrancar a pele da floresta enquanto travávamos a fundo e a salpicar as flores de sangue e carne negra da terra e depois… a sublime colisão. Sem gravidade, cósmica, num BPM híbrido, sempre lento, ora em rotação progressiva de valência positiva, ora a rebobinar. Voei graciosamente para o volante, contra o tablier, num mergulho olímpico. Ainda tenho tempo para virar a cabeça e sorrir para o júri, acenar para o público, sentir os flashes e… Bang! Caio dolorosamente na realidade outra vez, de cabeça... Nem sinto a cara, estou tonto, mas inteiro. Pelo buraco de um dente partido sugo outro cigarro e dou-lhe chama, alma, sorrindo salpicado em sangue.

A casota do Cardume
Carrego uma ânsia visceral de me amalgamar na multidão e roubar-lhes o vazio que assola as suas frívolas existências, feito abutre que se serve do cadáver podre. Vontade de abençoar essa cobiçada privação de emoção com o azedo da água benta que salpica cada átomo da minha agonizante realidade. Ser sardinha no cardume, cão de sarjeta, sem ter que fugir em vão de tudo que me assola e consome… Abdicar de mim. Eu, enquanto contorno, silhueta bipolar que demarca os limites das entranhas e oráculos - que, em festim, se alimentam do que carrego - mas também receptor magnético dos fantasmas que da minha assombração fazem vício, em matilhas. Um banho de futilidade, de gestos triviais e pensamentos curtos… Esquecer tudo isto tendo como terapia o lugar-comum, o espaço de todos… o refúgio de ninguém. Isso sim, sabia bem.
 
Bola de Espelhos
"...Era mais uma sexta à noite e a pista de dança palpitava ao ritmo de corpos que deambulavam em busca de impulsos estéreis mas intensos. Tu, distanciaste-te um pouco da tua amiga como se uma força magnética abrisse caminho para mais uma investida minha na tua direcção. Quando passava no vosso meio e me virei para ti, soltei uma frase cordeal fazendo, tu, sinal que não tinhas ouvido. Há medida que a repetia e mais me aproximava do teu ouvido a tua expressão de desinteresse torcidava o meu pobre coração intoxicado. A cruz da minha volta de ouro gelava-me o peito até que, de forma inesperada, te disse que ficavas bonita de vermelho. Tu hesitaste - talvez não percebendo que estava a brincar por teres perdido o jogo, de tarde, para a equipa vermelha - e depois de fazeres passar cruelmente a impressão que esta conversa não teria um final feliz disseste que estavas antipática, por te doerem os pés. Ao olhar para os teus sapatos conceitrei-me nos meus e avancei errantemente face ao desconhecido, a um torbilhão de zombies que se enroscam ao som de batidas de não pior gosto que o meu penteado... Tu ficaste para trás, assim como a réstea das minhas esperanças. Não em relação a nós mas sim depositadas na possibilidade de me poderes, secretamente, desejar e toda essa deslumbrante máscara deixasse fugir uma pista. Não mais tentei arranjar coragem ou motivo para te seduzir. Há pequenos momentos que não precisam de ser relevantes para mudarem fatalmente o rumo das coisas. Continuarás bem de vermelho... e eu a sabe-lo."

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