segunda-feira, 21 de maio de 2012

Ricardo Sá (O mecanismo é um registo)


                                       
  O mecanismo é um registo
O desmaio cobriu de branco as forças maquiavélicas que apertavam, com a força de gigantes, o meu corpo que sucumbia a uma espessa camada de cansaço enquanto desistia de lutar contra o narcótico que adormecia a minha débil musculatura. Caindo desamparado e inconsciente, como que por efeito de um pesado soporífero, a minha rendição foi incondicional, extremamente física, mas na minha consciência os sonhos a jusante foram libertadores, sonhos aflitivos, intermináveis pesadelos, entidades maléficas, das que lançam desafios de vida ou morte, ameaçavam aterrar nas minhas oníricas fortalezas, esses refúgios elaborados que surgem em sonhos frequentes e onde se desenrolam as charadas mais coloridas. Durante um desses sonhos aterradores, um ser do exterior quase conseguiu entrar na minha casa por uma janela, inadvertidamente aberta, mas avancei veloz e lancei-lhe um pó verde directamente à cara e não sei de onde veio esta poeira esverdeada se de algum bolso mágico ou uma manga arregaçada mas foi por instinto e muito eficaz porque mal consegui ver a sua expressão de desagrado quando ele desapareceu numa implosão de verdes ressonantes. Num outro sonho, em que eu pressentia o ambiente de fuga desenfreada ou perigo iminente porque eu estava do lado de fora da casa e dei pela urgência que tinha em entrar lá para dentro e o mais rápido possível seria por uma janela aberta por onde avancei, com a ansiedade de uma criança que se perdeu e que regressa a casa de seus pais, galgando secretamente uma alta janela: um primeiro pé que procura a base sustentável para se apoiar e nem o outro porque surgiu um indivíduo, a quem apenas reconheço a presença e que dentro da minha própria casa, sem me dar tempo para nada, avança para mim e lança-me um pó verde na cara, nesse instante surpreendente acordei em sobressalto, assim meio estranho e revoltado com a sensação desagradável de ter sido expulso de um sonho por uma trapaça esverdeada de outrem que sem se apresentar me pareceu excessivamente familiar e pensei: sou eu mesmo, o acordado? Estava tudo escuro à minha volta. Estaria eu ainda inconsciente ou quase morto? O negro que via era um negro de morte mas uma vozinha interior, bem minha conhecida, sussurrava os auspícios da verdade (em murmúrio): Um sonho é um sonho, havemos de te acordar… e com um pouco mais de esforço, domesticando o supra-consciente, acordei mesmo… esfrego-me no chão, frio e húmido, de uma cela bolorenta inundada de texturas atrozes porque ásperas dessa mesma matéria que me surrava o esqueleto, há tempos por saber. Já não sonhava, o meu próprio peso me garantia que o chão, que se entranhava na carne, era real e que o gélido ressoado, de cheiro tipicamente enfezado de onde provém esse sustento que é a realidade escrutinada pelos que sobrevivem no agora em que não me enterro neste chão mas em que também não estou a levitar sobre ele, este instante em que simplesmente estou aqui em repouso absoluto mas reactivo porque de um só golpe me levantei e percorri as quatro paredes, com as mãos a formar o quadrado deste lugar de claustrofobia pura, subi ao tecto e regressei ao chão para encontrar finalmente o que me revelou o caminho para fugir desta masmorra: Um raio de luz e o mecanismo que estava onde sempre esteve, no bolso das minhas calças esfarrapadas, tinha-me esquecido dele mas ao tocar-lhe recordei a minha jornada, este mecanismo é uma maqueta que representa, numa escala reduzida, o que vi no interior da pirâmide que surgiu durante o terramoto, no lago Titicaca. Aproximei o mecanismo de um feixe ténue de luz que penetrava na prisão e quando interceptei luz reflexiva, numa certa inclinação, o mecanismo começou a emitir uma pálida mas cada vez mais intensa luminosidade reflectida que transbordou em todos os poros do cárcere microscópico mas só quando comecei a sentir um certo calor reconfortante é que o guardião dos prisioneiros de destino incerto abriu o alçapão por onde me escapuli no seio de uma ofuscante luminosidade, agora cada vez mais intensa e que cegava o meu estorvo. Simultaneamente antevi a sua expressão de surpresa e a minha saída, estruturando mentalmente, em luminares fracções de tempo, a minha trajectória para fugir daquele destino de condenado e com uma agilidade desconcertante para os restantes guardas atónitos e paralisados por vagas de arrepios que pressenti como electricidade estática circundante quando passei por eles com a velocidade de um esgar esgazeado. Nessa mesma noite, depois de me afastar o suficiente pela floresta arborizada com uma labiríntica liberdade, como que para não ser nunca mais encontrado, cruzei-me com um pujante jaguar que me cedeu a passagem quando nos cruzamos na nossa nocturna e selvática deambulação, nesse momento eu, o jaguar e a selva harmonizamos ao luar pelo que, em sinal de reverência ou respeito secular, não olhei para trás enquanto me afastava e apenas avancei com audácia perante a sua aparente intenção em me deixar passar, o nosso encontro fugaz foi neutro mas revelador e à medida que me embrenhava na imensidão obscura os meus sentidos apuravam-se e movia-me com rapidez e precisão numa correria saltitante e aparentemente incerta. Ao amanhecer, numa alvorada esvoaçante, com o olhar binocular de não dormir ou uma lente potente que se forma temporariamente na córnea pela necessidade vital, nesta circunstância, desse mesmo efeito, vejo nitidamente e ao pormenor as formigas, os insectos, grãos de terra negra, castanha e vermelha, consigo focar ao mínimo detalhe a textura verde da folhagem e ao falar em voz alta ouço a minha voz como uma onomatopeia aleatória que se funde na cacofonia matinal da floresta onde me enquadro não sem afinidades viscerais e reparo então que os meus dedos estão cheios de golpes e secamente ensanguentados, mais tarde vim a saber que tinha escrito, com o meu próprio sangue, uma infinidade de equações matemáticas nas paredes do meu cárcere, uma série de formulações às quais ninguém deu importância excepto pelo facto de manifestar um comportamento obsessivo e maníaco que esteve na origem da minha captura. Sem dúvida uma espécie de sonambulismo de que não me recordo me levou a fazer isso mas agora só sentia o frémito de uma missão supra-científica e extra-histórica: esta peça de arqueologia, o mecanismo que quando manuseado intuitivamente na presença de um ténue raio de luz activa um processo quântico desconhecido. Procurei um sítio obscuro onde pudesse testar esse efeito e encontrei um refúgio cavernoso onde confortavelmente comecei a percorrer feixes de luz ténue com ele, bruscamente encontro um certo ângulo e uma certa luz que reflectindo na peça provocam uma inundação de luz que lentamente se transforma num foco de diversos hologramas até preencher toda a atmosfera por uma paisagem circundante que me transportou para uma visão de uma outra dimensão ou uma realidade que eu desconhecia, o mecanismo é um registo.

Sem comentários:

Enviar um comentário