segunda-feira, 21 de maio de 2012

Bernardo Barbosa (o REI EM lançou uma lei que obrigava todo o escrivão)



Redondez O arquitecto chinês era conhecido pela sua ousadia de formas e requisitado internacionalmente para os projectos mais vanguardistas. Era visto pelos seus pares como um grande homem, um artista de proféticas propriedades que traçava as casas mais criativas e os prédios mais vistosos. Mas na discrição da sua mente, o arquitecto enojava-se pela natureza do seu próprio trabalho: ele queria ser um pássaro, um errante pensador, um viajante incansável, mas dedicava a sua existência à edificação de imóveis. E “imóvel” era de todas, a sua palavra menos preferida.
  Um dia o arquitecto deitou-se na cama e adormeceu após longos minutos. Veio-lhe no sono a inspiração que esteve na base do seu mais notável feito: uma casa viajante. Escreveu-a com uma ciência impossível e apresentou-a aos seus contemporâneos, que julgaram ver no arquitecto, figura indiscutível da seriedade, uma ligeira embriaguez de espírito. Mas o sonho tem muita firmeza nas vontades do homem, e a casa viajante esteve pronta em menos de um ano. Era mistura das feitiçarias mais absurdas e das ciências menos concretas e passou a ser o lar do arquitecto chinês.
   Assim, todas as noites, este deitava-se no conforto da sua cama e viajava, não só pelos psicadélicos caminhos da sua mente mas também pelas estradas reais da existência, que essa estranha espécie de casa ia calcando. E acordou o arquitecto na primeira noite com o seu pijama de verão apenas para descobrir, lá fora, um cenário com pouco de estival. Durante um ano, o chinês descobriu meio mundo e acordou todos os dias para encontrar um país, um povo e uma paisagem diferentes. Despertava inundado de curiosidade, e assistiu, da pequena janelinha do seu quarto, aos monumentos italianos, aos fiordes escandinavos, aos desertos africanos, às praias portuguesas até, porque não. Como uma droga, este inédito formato de vida, que tanto prazer dava ao arquitecto, gerou uma dependência. Tornou-se este sujeito o mais viajado de todos os viajantes, e ironicamente o que menos se mexia. Passou a viver das conservas da dispensa e partilhou as suas magníficas experiências com mais ninguém senão o seu gato. Era uma vida bela, que se renovava a cada noite de sono, em que cada dia deixava descobrir uma multiplicidade de novas coisas, era um perpétuo excitamento, uma eterna cavalgada rumo ao desconhecido.
   Surpreende-me, casa!, dizia o arquitecto chinês do cimo dos Alpes suiços, e a casa logo o fazia acordar numa praia das Caraíbas. Como a vida é boa, pensava então ele, guardando a sua felicidade apenas para si, reservando as suas experiências apenas à sua memória.
   E um dia, depois de acordar de um sono profundo e de sonhar com o cosmos, o arquitecto contemplou com surpresa, sempre através da sua janela, a inconfundível face da China de onde tinha partido. E compreendeu nesse momento que não fora a sua casa a rodar à volta do mundo, mas o mundo à rodar à volta da sua casa.

REI EM
Há duzentos anos atrás o REI EM lançou uma lei que obrigava todo o escrivão, diplomata etcetra a escrever o seu nome em letras capitais, maiúsculas bem visíveis e orgulhosas, que destoassem das restantes letrinhas humildes do mesmo jeito que o REI EM destoava das gentes e das coisas sobre as quais reinava. REI EM morreu agora há uns bons anos atrás, como podem concluir os leitores mais conhecedores da brevidade humana; mas esta lei permaneceu e obriga-me, portanto, a aniquilar todas as hipóteses deste texto se notabilizar por um estilo limpo, ausente dessas porcarias que compõe a literatura moderna.
                                                       erna.
                                                ern.
                                                      er.
                                                          e.
   Foi por o REI EM se revelar um personagem tão aborrecido (e por vários outros escritores – esses escritores a sério – manifestarem a mesma opinião) que decidi precisamente escrever sobre ele. Destina-se este pequeno espécie de conto aos leitores que, necessitados de sono mas igualmente carentes de barbitúricos, gostariam de adormecer.

   Nasceu menino esse REI EM, pelo menos enquanto era bebé mamava inocentemente a teta de sua mãe. Não bastou muito até que as tetas alvas da mamagem fossem as do povo, que de mamas era liso que nem uma tábua, mas que mesmo assim era roubado até o mamilo se colar ao osso. Essa célebre lei, que acaba por motivar esta palavragem toda, fê-la lei o REI EM num dia de Verão quente; segundo relatos adquiridos, que é como quem diz, especulações inventadas por mim, o REI EM fê-lo em resposta à arrogância de Deus em deixar explícito que se escreva o Seu nome e qualquer referência pronominal com uma letra maiúscula no começo. A questão é que dizer Deus assim desta maneira não é nada que me preocupe, mas REI EM já é coisa que fica feia, e não posso fazer como com Deus e escrever deus, porque no caso do rei existem complicações legais a enfrentar. Mas o REI EM deixou bem assente nos registos históricos outras suas qualidades, como a do narcisismo. Numa medida que empregou cerca de cento e cinquenta homens fortes, ordenou a carregação de espelhos em seu redor, a todas as horas e momentos, para que pudesse sempre olhar a perfeição do seu rosto e o seu elogiado corpo ou faustosas roupas, um de cada vez porque só há histórias de reis nus e vestidos, a semi-nudez é coisa que não importa à nobreza. Isto, a ser verdade, só consegue atiçar a minha imaginação a considerar os momentos mais desconfortáveis como a cagadela real ou o xixizinho real, ou mesmo o sexo com a rainha, que coitada, tinha o rabo exposto em demasiados reflexos. Outra vez ainda forçou o REI EM todas as donzelas do reino a manifestar sentimentos de paixão aquando a sua passagem; isto claro, precedeu a lei dos espelhos, que não permitiam ao rei olhar para as montanhas, quanto mais para as donzelas.
   Eventualmente, os habitantes do país do REI EM habituaram-se à série de leis absurdas do jovem monarca, que se rebeliava contra os seus conselheiros e contra uma corte que, depois da lei das vestimentas de urso (que obrigava todos os nobres, excepto o rei, a vestirem-se de ursinho de peluche) deixou de parecer tão séria. Há quem diga que a atitude rebelde do REI EM influenciou o movimento punk da década de 70 e o manifesto anarquista, mas quem o diz é certamente parvo, porque tudo isto não passa de um delírio imaginativo assinado por mim. Prossigamos com ele, então.
   Mas o REI EM envelheceu. E os seus interesses mudaram. O rei deixava de ser o jovem inconsequente que todos conheciam e transformava-se, aos poucos, num sujeito culto e digno de elogio. Gostou de arte e pintou portanto retratos, horríveis desenhos de monstruosas criaturas (que eram antes de serem tela, belas mulheres) que eram elevadas pela crítica, completamente imparcial, a estatuto de obra-prima. Gostou depois de música e compôs as mais horríveis composições, que nem as melhores orquestras sabiam enobrecer, mas que o público, absolutamente iluminado, não fartava de aplaudir. Gostou de literatura e escreveu os mais básicos contos de crianças, que os intelectuais gostavam de considerar clássicos instantâneos, arranjando significados simbólicos inclusive para os erros ortográficos. Eventualmente, o REI EM seria conhecido não só como um ditador narcisista, mas também como um artista de grande sensibilidade.
   Foi neste clima de falsa apreciação que o REI EM, agora um sujeito sábio dedicado à cultura e a medicinas orientais, faleceu. Consta-se que estava a pintar um quadro quando sofreu um derrame dos miolos via olhos, motivado por uma vida de contínua espelhagem. O quadro, tão inacabado quanto tão pouco começado, está entre os mais conceituados da sua obra.
   Mas a questão continua a inclinar-se sobre mim: de que me valeu este esforço dos dedos. Pois vejam, REI EM continua a ser uma dessas palavras chatas, qual sigla internacional, que sou forçado a escrever ASSIM. Já escrevi cartas aos familiares directos do rei, que não me ligaram nenhuma porque estão ambos presos por consumo de cocaína. Já tentei todas as organizações internacionais de que me lembro, mas todas se encontram demasiado ocupadas com assuntos mais sérios. Já tentei inclusive a Santa Fé, mas eles não me desculparam aquela piada com Deus e até começaram a acender a lareira quando me viram. Restam-me que opções. Eu digo-vos: ser uma fora-da-lei do texto escrito, que tal como os ladrões que roubam para matar a fome, se insurge contra a lei por motivos de desespero. Talvez uma revolução se inicie de ora em diante, e em todas as seguintes edições de tomos históricos e volumes enciclopédicos, as referências ao REI EM se façam de uma forma menos grosseira para o estilo. De qualquer forma, o anúncio foi feito e a palavra cá vai; desculpem-me os mais ofendíveis, chegou a hora da revolução: “rei em” (intitulado assim, com minúsculas)

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